quarta-feira, 16 de maio de 2018

MÁXIMO GORKI: "CONDUZIREMOS A HUMANIDADE À FELICIDADE, MESMO QUE SEJA À FORÇA". Por Carlos Russo Jr


Desde o ano 1918 até 1930, Gorki esteve em todas as listas de concorrentes ao Prêmio Nobel de Literatura, sem, injustamente, jamais ter sido agraciado com o mesmo. Nesses anos tornara-se um legítimo sucessor de Tolstoi e Dostoievski, sendo então o escritor mais amado de toda a Rússia e de boa parte do mundo europeu.

Aquele que já nasceu poeta antes mesmo de aprender a escrever corretamente, faleceu aos 66 anos de uma maneira que até hoje permanece um mistério: tratou-se de morte natural ou foi assassinato?

Gorki morreu nos arredores de Moscou, na mesma casa onde doze anos antes morrera Lênin. O corpo foi sepultado com todas as honras na Praça Vermelha, junto ao mausoléu do dirigente comunista. O laudo médico acusou:  pneumonia.

Dois anos após, entretanto, a Promotoria de Justiça acusou “agentes de Trotski e fascistas” de terem envenenado o escritor-símbolo da literatura proletária. Nos bancos dos réus sentaram Genrikh Iagoda, chefe da polícia secreta diretamente subordinada a Stalin, Vladimir Kriutchov, secretário de Gorki e agente de polícia, e vários médicos do Kremlin. Todos confessaram publicamente seus crimes, incluindo o assassinato de um filho de Gorki, e foram fuzilados.

Gorki, o amargo, pseudônimo de Máximo Peschow, nasceu na extrema pobreza, em 1868. Órfão, ainda criança, o menino teve de deixar a casa do avô para ganhar a vida. Ocupou-se do que havia à mão, de sapateiro e desenhista até lavador de pratos em navios. Mais tarde, peregrinou até Odessa com uma turma de marginais nômades em busca de emprego. Trabalhou como estivador, auxiliar de escritório, jardineiro, cantor de coro, padeiro. Viajou pelo Cáucaso, Crimeia e Ucrânia. Sofreu a miséria, o frio, a fome e a revolta de um andarilho: este é seu curso universitário, batizado mais tarde por ele como “Minhas Universidades”.

Dono de um autodidatismo fantástico e de uma enorme sede de saber, Gorki aderiu desde cedo a grupos revolucionários clandestinos. Em 1887, desesperado por um amor não correspondido tentou-se suicidar com um tiro no peito. Não morreu, mas os pulmões jamais o perdoariam.

Seis anos mais tarde ganhou fama com a publicação de “Ensaios e Contos” (1898). Em 1902, Gorki foi eleito membro honorário da Academia das Ciências, título que lhe foi imediatamente retirado pelo czar Nicolau II, que via nele um revolucionário. Gorki não se abalou, contou com a solidariedade de Tchecov, e dedicou-se a escrever peças de teatro que o colocaram entre os grandes dramaturgos do princípio do século XX.

Dois anos após, perseguido pelo czarismo, o escritor emigrou para o estrangeiro. Primeiro foi para os Estados Unidos, onde teve sua permanência dificultada pelo embaixador russo. Gorki tentava levantar fundos para a futura revolução, mas Randolph Hearst, dono da maior cadeia de jornais americanos, tratou de dificultar-lhe os passos acusando-o de imoralidade pública, pois Gorki era casado pela terceira vez!

O escritor encontra um refúgio com sua mulher, Maria Budberg, em Staten Island, onde escreve o romance “Mãe” (1907), considerado a obra precursora do “realismo socialista”, e uma importante peça teatral, “Os Inimigos”.

Logo a seguir decide viver no sul da Itália, onde o clima ameno era melhor para o tratamento de seus pulmões. Foi em Sorrento que se consolidou a amizade de toda uma vida entre ele e Lênin.

Toda a obra de Gorki tem como cenário o submundo russo, lugar social no qual o autor registra com vigor e emoção os personagens que integravam as classes excluídas: operários, vagabundos, prostitutas, homens e mulheres do povo,  como descreve em “Ralé”, aqueles que ele intitula provocativamente de “ex-homens”. Ora, o autor conhecia aquele universo por dentro, sua biografia era a de um verdadeiro desvalido; Gorki vivenciara o êxodo e a exclusão. Talvez por isso mesmo, Gorki conseguiu alcançar o que havia de mais profundo na alma do povo russo. Daí o caráter autêntico que ganhou sua obra como o criador da chamada literatura proletária, e que rapidamente se espalhou pelo mundo inteiro e permaneceu como referencial literário até os anos 70/80 do século passado.

Acontece que existe em Gorki a força do natural e a beleza do espontâneo, o que legitima seu trabalho artístico. Há também a transfiguração da realidade, o surrealismo da fuga ao legítimo, que é uma espécie de fôlego para a alma em seu enquadramento numa dura realidade.

Podemos traçar um interessante contraste entre ele e os principais autores russos. De um lado a metafísica da dor, do crime e do castigo de Dostoiévski ; de outro, a caridade do agnóstico-cristão-anarquista Tolstói. Pois Gorki conseguiu opor uma alegria de viver, substituindo a exaltação do sofrimento por uma raiva instintiva e uma violência ideologicamente justificada. A luta social de Gorki não é sofrimento metafísico, mas o conflito desperto por situações de injustiças e de sobrevivência num meio social excludente e violento, com conteúdo político e formatação panfletária.

A luta social ganha com Gorki a dimensão coletiva da visão social em sua totalidade. A seus olhos incorruptíveis deveu a humanidade o que existiu de mais verídico no mundo russo, um povo com suas peculiaridades, mas tão próximo a todos os explorados e oprimidos do planeta.

Tanto a obra teatral quanto a literária de Máximo Gorki pode ser relacionada ao naturalismo, tanto na expressão, quanto na forma de sua narrativa, onde encontramos o anseio de transformação da realidade social e política. E o que tanto a vida quanto a obra de Górki demonstram é uma verdadeira saga pela transformação do mundo!

Em 1913, tendo sido anistiado, regressou à Rússia, onde se envolveu em intensa atividade política, jornalística e literária. Dirigiu um jornal mensal, Liétopis (Crônica), e sempre atuou alinhado com Lênin e os bolcheviques, tendo sido um dos líderes na preparação da revolução que abalaria o mundo. Quando esta triunfa, em 1917, Gorki é um de seus ícones.

Gorki desde a vitória da Revolução assumiu como obrigação defender a intelectualidade, os escritores, artistas e os cientistas. Não por acaso, muitos que se consideravam de alguma forma perseguidos a ele apelavam.  Conseguiu com que Lênin o nomeasse para um cargo que o tornasse responsável por aqueles. Depois disso ele passou a assoberbar o líder com petições sobre petições.

A relação entre Gorki e Lênin ameaça se deteriorar quando Gorki intervém contra a execução de social-revolucionários condenados à morte. Lênin, sob pressão do amigo, negou a execução da sentença. “Ele era capaz, nos extremos, de ter uma atitude mais apaziguadora.”

Gorki, em seguida, fundou a Revista Besseda (Conversações), para a divulgação do socialismo fora das fronteiras russas. Entretanto, sua venda foi proibida internamente e nenhum escritor teve permissão para com ela colaborar.

Gorki aconselhou por palavras e por escrito a que Lênin, após a rebelião dos marinheiros de Kronstadt, a não repetir as medidas tirânicas que a Revolução havia teoricamente abolido; após o massacre dos rebeldes realizado pelo Exército Vermelho sob a liderança de Trotski, Máximo Gorki decidiu-se pelo auto exílio. Em 1921, oficialmente adoece dos pulmões, e parte para Sorrento, Itália, onde permanecerá até 1933. Ali escreve “Meus dias com Lênin”, publicado logo após a morte do líder.

Em 1923, a URSS instituiu uma comissão comandada por Spieranski e Krupskaia, a esposa de Lênin, que produziu um guia de obras antiliterárias e contrárias à Revolução, que deveriam ser banidas das bibliotecas. Nela figuravam obras de Platão, Kant, Schopenhauer, Ruskin, Nietzsche, Leskov e até mesmo de Tolstoi, assim como obras da rica teologia russa. Em artigo publicado no Pravda, Gorki se posicionou contra a proibição de livros. Sabe-se que ficou furioso com o engavetamento das obras históricas teológicas.

Retornou à U.R.S.S. em 1928, para a comemoração dos dez anos da Revolução de Outubro, que coincidiam com o seu sexagésimo ano de vida. Obteve a autorização de Stefan Zweig para a edição em russo de suas obras completas. Conseguiu também, a duras penas, obter autorização para a instalação de Biblioteca do Poeta, que permitiu a divulgação de poesias não canônicas como as de Pasternak, de Marina Tzvietaiena e de Ana Akhamatova.

Decide empreender dez mil quilômetros e retornar ao sul da Itália, onde contava com todo o apoio de uma antiga aristocrata russa progressista. Entretanto, em 1933, com o nazismo se apossando do poder na Alemanha e a Itália fascista ampliando a repressão política e devido à forte insistência de Stalin, assim como ao pedido de diversos escritores russos que clamavam por sua proteção junto ao poder central, o escritor decidiu regressar definitivamente à URSS, sendo apoteoticamente recebido. Recebeu regalias que ele próprio dispensava. Foi por Stalin instalado no centro da vida cultural soviética.

Como testemunho de que nem tudo é linear na vida, principalmente nos terríveis anos de 1930, Gorki de apoiador crítico transformou-se em propagandista do Estado Soviético. Em 1936, visitou o primeiro campo de trabalhos forçados nas ilhas Solovetski e as obras de construção do desastroso canal de Belomor, onde trabalharam e morreram milhares dos chamados “contrarrevolucionários”. Gorki viu esses gulags como “centros de reabilitação da vanguarda proletária”.

No início dos anos 30, começou a discriminação, a vigilância e a detenção massiva dos homossexuais, entre eles personalidades do mundo literário, artistas e músicos. A defesa decidida da homossexualidade, levada a cabo por parte de velhos revolucionários, como Clara Zetkin, não foi suficiente para frear a situação. Os detidos podiam ser condenados a vários anos de prisão e ao exílio na Sibéria.

Um dos literatos que tratou com mais brutalidade a questão homossexual foi Máximo Gorki, que em seu artigo “Humanismo proletário” argumentou: “Nos países fascistas, a homossexualidade, açoite da juventude, floresce sem o menor castigo; no país onde o proletariado alcançou o poder social, a homossexualidade tem sido declarada delito social e deve ser severamente castigada. Na Alemanha já existe um lema que diz: ’Erradicando os homossexuais, desaparece o fascismo’”.

Concomitantemente com o I Congresso dos Escritores Socialistas realizado em 1934, que decretou a obrigatoriedade do “realismo socialista”, Gorki em “Filhos do Sol”, fez a denúncia da facção da intelectualidade russa que não se alinhava aos cânones revolucionários.

No livro “Meus dias com Lênin”, que sofreu modificações consideráveis após sua morte, o texto original terminava da seguinte maneira: “No final de contas, o que acaba vencendo é o que há de honesto e direito naquilo que o homem faz, aquilo sem o qual ele não seria um homem”.

Outro trecho suprimido e que somente veio à luz nos anos 70, foi um diálogo entre Gorki e Lênin por aquele retratado: “Com frequência eu conversava com Lênin sobre a crueldade das táticas revolucionárias e da vida sob a Revolução”.

“O que você queria? Perguntava ele atônito e irritado. Será possível ter considerações humanitárias numa luta como essa, de ferocidade inaudita?” Respondia Lênin. “Por quais critérios se mede a quantidade de socos necessária e desnecessária numa luta?”, ele me perguntou após uma discussão áspera. Respondi-lhe poeticamente: “O que significa isto?”

“Uma vez perguntei-lhe: é impressão minha ou você realmente tem pena das pessoas?” Lênin: “Dos inteligentes tenho pena. Há poucas pessoas inteligentes entre nós, mas temos uma inteligência preguiçosa. Como povo, somos de um modo geral, talentosos. O russo inteligente é quase sempre judeu, ou tem um pouco de sangue judeu.”

Afinal, duas décadas após a morte de Máximo Gorki, outro poeta comunista, Bertolt Brecht, diria: “Quem é você? Afunde na lama, beije o carniceiro, mas mude o mundo, o mundo precisa mudar”. Idêntico espírito da frase de Gorki, espírito de seu tempo histórico: ”Conduziremos a humanidade à felicidade, mesmo que seja à força”.

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