“Talvez
chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos
dos quais jamais poderiam ter sido privados, a não ser pela mão da tirania. Os
franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser
humano seja abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É
possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da
pele ou a terminação dos sacrum são motivos igualmente insuficientes para se
abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deveria determinar a
linha insuperável? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade de falar? Mas
para lá de toda comparação possível, um cavalo ou um cão adultos são muito mais
racionais, além de bem mais sociáveis, do que um bebê de um dia, uma semana, ou
até mesmo de um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim; que importância
teria tal fato? A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se
conseguem falar, mas, sim, se são passíveis de sofrimento”. – Jeremy Bentham
Peter
Singer, autor de livros como Practical Ethics (Ética Prática em tradução
brasileira da Martins Fontes) e Animal Liberation, é um dos maiores
filósofos-eticistas da atualidade – e também um dos mais polêmicos. Filiado à
tradição utilitarista, que tem entre seus maiores expoentes J.Bentham e
J.S.Mill, Singer avança em relação a estes e postula como princípio ético
básico o Princípio da Igual Consideração de Interesses, que ele considera como
sendo um princípio básico de igualdade.
A
essência do Princípio da Igual Consideração de Interesses é a de que em nossas
deliberações morais devemos atribuir o mesmo peso aos interesses semelhantes de
todos que são atingidos por nossos atos. Por esse princípio, um interesse é um
interesse, seja lá de quem for. O princípio, então, atuaria como uma balança,
pesando imparcialmente os interesses de cada um. Uma correta aplicação do
Princípio da Igual Consideração de Interesses nos leva a uma condenação radical
do racismo, do sexismo, e também (e é isso que nos interessa mais diretamente
aqui) do especismo.
Mas
o que é o especismo? O especismo pode ser entendido em analogia com o racismo.
O racista é aquele que supõe que os membros de sua raça tem mais valor que os
membros de outras raças. O racista, pois, considera que os fatores
físico/biológicos que determinam que um indivíduo pertença a uma determinada
raça têm um valor moral. O especista é uma espécie de “racista ampliado”, ou
seja, ele acredita que os fatores biológicos que determinam a linha divisória
de nossa espécie têm um valor moral, ou seja, a vida de um membro da espécie
humana, pelo simples fato do indivíduo pertencer à espécie humana, tem mais
valor do que a vida de qualquer outro ser. A conseqüência mais nefasta do
especismo seria a de considerar que é moralmente admissível infligir sofrimento
a seres que não pertencem à espécie humana.
O
que Singer faz, entre outras coisas, é uma crítica ao especismo a partir da
defesa do seu Princípio da Igual Consideração de Interesses. Para ele, ao mesmo
tempo que esse princípio proporciona uma base adequada para a igualdade humana,
esta base não pode ficar restrita aos seres humanos. Ele supõe que uma vez que
tenhamos aceitado o princípio como uma sólida base moral para as relações com
seres de nossa própria espécie, também somos obrigados a aceitá-lo como uma
sólida base moral para as relações com aqueles que não pertencem a nossa
espécie: os animais não humanos.
Mas,
pergunta-se ironicamente o próprio Peter Singer, como é possível que alguém
perca seu tempo tratando de igualdade dos animais quando a verdadeira igualdade
é negada a tantos seres humanos? Sua resposta é a de que essa atitude (negar
importância à discussão sobre direitos dos animais) reflete um preconceito que
é tão infundado quanto aquele que um dia levou os brancos proprietários de
escravos a não considerar com a devida seriedade os interesses de seus escravos
africanos. Para nós, diz Singer, é fácil criticar os preconceitos dos nossos
avós, dos quais nossos pais se libertaram, mas é muito mais difícil nos
distanciarmos de nossos próprios pontos de vista, de tal modo que possamos,
imparcialmente, procurar preconceitos entre as crenças e os valores que
defendemos.
É
nessa linha que Singer escreve algumas das mais belas páginas já escritas em
favor do respeito e da consideração aos animais. Na linha já esboçada por
Bentham, ele vai dizer que se um ser sofre não pode haver nenhuma justificativa
de ordem moral para que nos recusemos a levar esse sofrimento em consideração.
Seja qual for a natureza do ser, o Princípio da Igual Consideração de
Interesses exige que o sofrimento seja levado em conta em termos de igualdade
com o sofrimento semelhante de qualquer outro ser. E é precisamente isto que os
especistas não admitem, ou seja, que a dor é tão má quando sentida por porcos,
ratos, ou por seres humanos. Se achamos errado infligir dor a um bebê sem nenhum
motivo, então, a menos que sejamos especistas, devemos achar igualmente errado
infligir, sem motivo algum, a mesma quantidade de dor a um cavalo. A dor e o
sofrimento são coisas más e, independente da raça, do sexo ou da espécie de
quem as sofre, devem ser evitadas ou mitigadas.
Após
estas postulações Singer nos convida a refletir, apresentando uma série de
crueldades que são cometidas pelos humanos contra os animais. Nesta lista de
horrores estão a castração, a separação de mães e filhotes, a separação de
rebanhos, as marcas com ferro em brasa. Isto sem falar na exposição de animais
à atos de crueldade extremos sob a desculpa de que estão sendo realizadas
experiências que seriam úteis para os humanos. Ele cita experiências que foram
realizadas em décadas passadas no Instituto de Radiobiologia da Forças Armadas
dos EUA, em que macacos do gênero Rhesus eram forçados a correr dentro de uma
grande roda. Quando eles reduziam a velocidade a roda fazia o mesmo e os
macacos levavam choques elétricos. Quando os macacos estavam já treinados para
correr por longos períodos, recebiam doses letais de radiação, e então,
sentindo-se mal e vomitando, eram obrigados a continuar correndo até cair. A
suposta finalidade desta “experiência” era obter informações sobre a capacidade
dos soldados de continuar lutando depois de um ataque nuclear. A conclusão de
Singer é a de que nestes e em muitos outros casos os benefícios para os seres
humanos são inexistentes ou incertos, ao passo que as perdas para os membros de
outras espécies são concretas e inequívocas. Uma correta aplicação do Princípio
da Igual Consideração de Interesses condenaria estas experiências do ponto de
vista ético.
O
que o filósofo Peter Singer faz quando discute as questões éticas relativas aos
animais é, antes de tudo, um chamamento dos humanos para a reflexão. É fora de
dúvida que o que diferencia os humanos do resto da criação animal é justamente
a faculdade da razão. Mas o que estamos fazendo com nossa Razão? Se a
utilização da Razão leva a atos de extrema crueldade para com aqueles que estão
indefesos diante de nós, não seria a hora de usarmos o nosso raciocínio para
rever nosso papel neste belo planeta azul? A Razão humana pode ser libertadora,
mas pode ser, também, sádica e cruel. É chegado o tempo dos homens analisarem
cuidadosamente o significado disto. Para que as outras espécies não sofram as
conseqüências de erros que são de inteira responsabilidade nossa. De nós, os
humanos…
Autora: Cinara
Nahra – Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Mestre na área de Filosofia Moral e Política pela UFRGS.
Co-autora de Através da Lógica (Ed.Vozes) e autora de Malditas Defesas Morais
(Cooperativa Cultural/RN).
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