O
julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo Tribunal Regional
Federal da 4ª Região (TRF4), realizado no dia 24 de janeiro em Porto Alegre
(RS), mostrou ao mundo como o sistema Judiciário, quando necessário, pode ser
primário em relação ao direito dos réus, cometer violações de prerrogativas legais
e usar provas ilícitas para fazer valer um ponto de vista. Essa é a avaliação
da jurista Carol Proner, doutora em Direito e professora da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Segundo
Proner, que participou recentemente de um encontro com juristas na Espanha, a
opinião pública estrangeira recebeu muito mal o resultado do julgamento. Para a
jurista, veículos como o “ The New York Times” e “Le Monde Diplomatique”
fizeram questão de ressaltar a “falta de princípios estruturantes do mínimo do
que seria um processo considerado justo”.
Em
entrevista exclusiva ao “Brasil de Fato”, Proner, que integra a Frente Brasil
de Juristas pela Democracia, também falou sobre os próximos passos do processo
que envolve o ex-presidente, a Lei da Ficha Limpa e o poder do capital que,
segundo ela, tem cada vez mais influenciado setores do Judiciário.
Confira alguns
trechos da entrevista.
Brasil de Fato: Quais foram as justificativas que
levaram o Tribunal Regional Federal da 4ª Região a aumentar a pena do
ex-presidente Lula de nove para 12 anos?
Carol Proner: A sentença é, do ponto de vista
técnico, muito questionável. Já os artigos dos especialistas em processo penal,
que trabalham com as garantias jurídicas, têm sido implacáveis quanto ao
direito de liberdade, direito de ser inocente até que se prove o contrário. É
muito grande a quantidade de argumentos que fazem com que a sentença em segundo
grau seja ainda mais surpreendente no sentido do não respeito ao direito.
É
muito grave a forma acelerada como se fez esse julgamento, tentando alcançar um
marco legal da Lei da Ficha Limpa, obviamente, considerando o calendário
eleitoral para impedir que Lula seja candidato. Isso é transparente e evidente.
Isso é comprovado pela forma acelerada e orquestrada na formulação dos votos,
que não dá margem para qualquer tipo de dissonância técnica ou jurídica para,
eventualmente, embasar um ou mais recursos que não sejam os embargos
declaratórios.
Nesse
caso, nós temos uma situação clara a respeito da tentativa do uso recursal e da
aplicação da Ficha Limpa para impedir que Lula seja preso, mas muita coisa nova
está surgindo. Tanto o juiz Sérgio Moro como o Tribunal de Porto Alegre,
fizeram um jogral que não deu margem para os embargos infringentes e para poder
questionar as diferenças de posicionamentos.
Daqui
em diante, o que pode ser feito em relação ao processo do ex-presidente Lula?
Quais devem ser os próximos passos?
Os
advogados de defesa já estão mirando os tribunais superiores, vão usar todos os
recursos disponíveis e estão fazendo isso de uma forma muito correta, muito
atenta. Eu tenho a impressão que não vamos abrir mão tanto de expor a
tecnicidade do julgamento, quanto utilizar a tecnicidade para fazer a defesa do
ex-presidente de forma correta para garantir que ele possa se candidatar.
Agora,
a sociedade está reagindo de forma surpreendente, porque as pesquisas de
opinião mostram que Lula não foi afetado nas intenções de voto pela condenação.
Isso significa que a sociedade brasileira está entendendo esse processo como
uma farsa jurídica.
A
impressão que dá é a percepção cada vez maior de que o Judiciário já está se
envolvendo nas eleições, o que é absolutamente inadmissível. É preciso
dialogar, de forma paradidática com a Suprema Corte, pela responsabilidade que
ela tem em conter os avanços desse caso específico de jurisprudência. Nós
estamos falando do poder Judiciário, um poder legítimo de exercício da administração
da justiça.
O
ex-presidente Lula tem a possibilidade de, por meio de uma brecha da Lei da
Ficha Limpa, garantir a sua candidatura, mesmo com outra chapa tentando
impugná-lo depois das inscrições oficiais em 15 de agosto?
Sim,
há uma brecha na Lei da Ficha Limpa que já foi usada por diversas outras
pessoas em situações parecidas. Obviamente não eram ex-presidentes da República
e não era uma candidatura à Presidência da República, mas candidaturas
eleitorais que foram, através dessa brecha, mantidas e depois confirmadas após
julgamento no Supremo Tribunal Eleitoral.
Então
tudo está posto agora a prova nesse caso. Qual é a tônica principal? Eu volto a
dizer: nós estamos vivendo uma fratura institucional muito grave por conta de
um “ impeachment” sem crime de responsabilidade, que traz à sociedade
brasileira a sensação de estar sendo governada por usurpadores, que estão
fazendo um governo antipopular, antissoberano, o que acaba assustando muito as
pessoas.
O
advogado do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Geoffrey Robertson, fez
questão de assistir ao julgamento do ex-presidente Lula e tem falado sobre as
irregularidades cometidas. Como o caso tem sido visto internacionalmente?
Dos
300 jornalistas que estavam em Porto Alegre acompanhando o julgamento, mais de
50 eram jornalistas estrangeiros. No “The New York Times” e no “Le Monde
Diplomatique“, logo depois da sessão, foi destaque o primarismo desse
julgamento em relação aos direitos de defesa do réu, da própria defesa, a
violação das prerrogativas, o uso de provas ilegais, ilícitas, enfim, a questão
da paridade das armas, uma série de princípios estruturantes do mínimo do que
seria um processo considerado justo.
O
Geoffrey Robertson já tinha conhecimento do caso, vem acompanhando pelas ações
da defesa junto às Nações Unidas. Mas ele quis estar presente observando
daquela sala destinada às autoridades e saiu escandalizado pelo que viu.
A
gente acabou de voltar de um seminário internacional que falou da
pós-democracia, ou do chamado capitalismo neoliberal pós democrático. Estamos
vivendo, no mundo inteiro, um capitalismo tão agressivo que ele já não precisa
mais de instrumentos democráticos. Até que ponto o poder Judiciário, os setores
do poder Judiciário, o controle dos tribunais, não são uma estratégia do grande
capital?
Muito
tem se falado sobre uma reforma do Judiciário, eleição para juízes… Esse é o
momento de começar a pautar esse tipo de discussão?
Discutir
uma reforma judiciária na crise que nós estamos, com o Congresso que temos,
diante dessa correlação de forças absolutamente desfavorável a qualquer
princípio democrático, em qualquer um dos poderes, seria inviável. Agora, já há
tentativas de discutir as crises nos poderes, porque isso gera uma ansiedade
popular muito grande, dessa sensação de estar sempre sendo enganado pelos
políticos, uma desvalorização da ideia de partido e de político. Tudo isso é
crise, mas isso não dá direito que o Judiciário se desloque tanto assim da sua
função.
Estão,
portanto, na vitrine desse processo político atual, não apenas porque nas mãos
desse poder está a possibilidade da sanidade eleitoral de 2018, como também
pelo fato de que eles tenham algumas fragilidades, algumas debilidades com
relação ao que se poderia ser considerado justo em uma sociedade.
A
começar com seus salários, e não os salários em si, mas o que eles chamam de
‘penduricalhos’, esses extras que geram um valor muito além daquilo que seria a
média de recebimento de um funcionário público.
O
caso do juiz [Marcelo] Bretas, do Rio de Janeiro, é o mais simbólico nesse
processo e serve de lição. Ele mesmo tirou sua conta do Twitter depois do
debate que teve, do twitaço que foi feito, porque não se sustenta que duas
pessoas casadas recebam o mesmo benefício. Se não é um critério normativo é um
critério de justiça, e é um juiz, é um magistrado, está dando um exemplo
social.
Sobre
a exposição rotineira do Judiciário nos meios de comunicação. O quanto isso
influencia também o voto dos juízes?
O
Judiciário não pode se queixar da exposição, que acaba afetando toda a
corporação. É um fenômeno que já não se pode controlar. Uma vez que eles vão
para o campo político, deslocando-se da sua função original de inibir
conflitos, de administrar a justiça no campo jurídico, quando eles querem
também atuar naquilo que não seria a sua competência original, vão dar asas
também para que a sociedade reaja politicamente.
Então,
quando os juízes são atacados, é desagradável ver juízes sendo atacados aí na
rua, quando estão de férias, dentro de um avião, é super desagradável. Eu
pessoalmente acho um absurdo, eu não faria isso por uma questão republicana,
institucional, democrática, mas é compreensível. Talvez não seja aceitável, mas
é compreensível que isso aconteça diante do papel extrapolado funcional que
eles estão exercendo.
Isso
deveria ser um alerta para gerar uma reflexão interna dentro do poder
Judiciário. Agora veja: é um poder com muito autopoder. Eles se autogovernam,
se autorregulam, regulam seus próprios salários, definem seus próprios
salários, não tem um controle popular porque não são eleitos.
Existe
a possibilidade da candidatura do ex-presidente Lula acontecer, mesmo que ele
seja preso?
É
um debate, porque ele pode ser preso com o julgamento em andamento. Em tese,
poderia ser possível sim, porque ele não foi julgado, não houve trânsito em
julgado. E uma decisão da Suprema Corte ainda está para ser suscitada — e
provavelmente será no momento em que o processo chegar na segunda turma.
Então,
o que esperar do Supremo Tribunal Federal? Não pode haver prisão, é injusto o
processo e a confirmação da sentença. Os movimentos sociais vão se levantar
independente de apoiarem ou não o Lula porque tem candidaturas avulsas de
partidos de esquerda.
Ele
[Lula] representa muita coisa, não apenas um candidato do PT, mas uma pessoa
que trouxe para o Brasil uma possibilidade de inclusão social que o país nunca
teve e, agora, o contraste muito grande com a destruição do país em todos os
âmbitos. Eu não vejo ninguém contente, mesmo as pessoas que não estão reagindo
ainda, daqui a pouco vão se dar conta do legado. O legado não é do PT, mas de
uma mistura de políticas públicas apoiadas em uma democracia de coalizão com a
luta popular para manter seus direitos e suas garantias.
Do Brasil de
Fato
http://www.pt.org.br/carol-proner-julgamento-de-lula-mostrou-um-judiciario-primario/
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