Após
a operação na UFMG, o desembargador Lédio Rosa de Andrade, do TJ-SC, denuncia
um plano “para atacar as universidades”; Não se sabe até que ponto esse
planejamento é “consubstanciado em provas” de crimes dentro da universidade ou
é um “planejamento para destruir a universidade”, diz; “Aliás, a gente não sabe
nem o que é a Lava Jato mesmo”, afirma; “Estão sendo feitas verdadeiras
barbaridades sob o ponto de vista jurídico e das conquistas civilizatórias em
termos de Estado democrático de Direito, com a complacência dos tribunais superiores.
Considerando o que está sendo feito na Lava Jato, em muitos países civilizados
do mundo, os condutores estariam presos por ofensa à ordem democrática”
O
discurso emocionado feito pelo desembargador Lédio Rosa de Andrade, magistrado
no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, na sessão fúnebre em homenagem ao
reitor Luiz Carlos Cancellier, ganhou repercussão nacional ao denunciar a
implantação de uma ditadura no Brasil e a ameaça do retorno do fascismo no
país. Em sua fala, o desembargador fez, ao mesmo tempo, um alerta e uma
convocação para enfrentar essa ameaça: “Esta noite fiquei a pensar quando a
humanidade errou e não parou Hitler no momento certo, quando a humanidade errou
e não parou Mussolini no momento certo… Eles estão de volta. Será que vamos
errar de novo e vamos deixá-los tomar o poder? A democracia não permite
descanso. Eles [os fascistas] estão de volta. Temos que pará-los”.
Passados
pouco mais de dois meses do trágico suicídio do reitor da Universidade Federal
de Santa Catarina, a Polícia Federal segue realizando operações em
universidades públicas, como ocorreu na semana passada na Federal de Minas
Gerais e na própria UFSC, mais uma vez. “Não há dúvida de que existe um
planejamento para atacar as universidades. A gente não sabe ainda até que ponto
esse planejamento é consubstanciado em provas de uma série de crimes dentro da
universidade ou é um planejamento para destruir a universidade”, diz Lédio Rosa
de Andrade, em entrevista ao Sul21.
“Aliás”,
acrescenta o desembargador, “a gente não sabe nem o que é a Lava Jato mesmo.
Temos apenas hipóteses. O que se sabe é que há processos muito bem estruturados
pela Polícia Federal para atacar a universidade”. No Brasil, afirma ainda o
magistrado, “estão sendo feitas verdadeiras barbaridades sob o ponto de vista
jurídico e das conquistas civilizatórias em termos de Estado democrático de
Direito, com a complacência dos tribunais superiores. Considerando o que está
sendo feito na Lava Jato, em muitos países civilizados do mundo, os condutores
estariam presos por ofensa à ordem democrática”.
Sul21: Após a morte
trágica do reitor Luiz Carlos Cancellier foram tomadas algumas iniciativas para
apurar as circunstâncias em que ela ocorreu e a responsabilidade de autoridades
envolvidas no caso. Qual o estágio atual dessas apurações?
Lédio Rosa de Andrade: A situação, na minha ótica, é
horrível. Neste exato momento em que estou falando contigo [dia 7 de dezembro,
quinta-feira], a Polícia Federal invadiu novamente a nossa universidade.
Estamos vivendo, efetivamente, a volta de uma ditadura, diferente da de 64, mas
uma ditadura. Não tem outra palavra para definir o que está acontecendo. Estão
utilizando uma interpretação totalmente afrontosa à legislação penal para,
coercitivamente, levar pessoas que nunca foram intimadas a depor em lugar
nenhum. A lei é clara. Você só pode levar alguém em uma condução coercitiva se
essa pessoa se nega a depor. A partir da Lava Jato a interpretação é de que o
juiz pode mandar levar alguém em condução coercitiva ou prender e pronto.
Estão
fazendo isso como prática corriqueira. Eu não posso negar que seja possível a
existência de crimes dentro da universidade. Onde há seres humanos,
evidentemente, podem ocorrer crimes. Agora, a forma como estão agindo,
deliberadamente ostensiva e violenta, não tem justificativa na história de
qualquer estado democrático de direito em qualquer parte deste planeta.
Sul21: Esta nova ação da
Polícia Federal na UFSC se refere ao mesmo caso da anterior?
Lédio Rosa de Andrade: Hoje (7), a gente não sabe
exatamente. Pelo que li na imprensa, a polícia declarou que não tem relação com
o outro processo.
Sul21: Chama a atenção
que ela ocorreu um dia depois de outra ação da Polícia Federal na Universidade
Federal de Minas Gerais…
Lédio Rosa de Andrade: Não há dúvida de que existe um
planejamento para atacar as universidades. A gente não sabe ainda até que ponto
esse planejamento é consubstanciado em provas de uma série de crimes dentro da
universidade ou é um planejamento para destruir a universidade. No Brasil,
lamentavelmente, essas coisas ocorrem. Nós não sabemos o que está acontecendo.
Aliás, a gente não sabe nem o que é a Lava Jato mesmo. Temos apenas hipóteses.
O que se sabe é que há processos muito bem estruturados pela Polícia Federal
para atacar a universidade. Vamos esperar para ver se esse ataque é
justificável ou não.
Sul21: O senhor tem uma
hipótese que considera mais plausível acerca da natureza da Lava Jato?
Lédio Rosa de Andrade: Não tenho. Não consegui até hoje
compreender isso com clareza. Não gosto de fazer hipóteses sem um mínimo de
fundamento. Não consegui ainda ver um fundamento concreto que explique o que
está acontecendo. O que vejo é que as coisas estão acontecendo de forma errada.
Considerando o que está sendo feito na Lava Jato, em muitos países civilizados
do mundo, os condutores estariam presos por ofensa à ordem democrática. No
Brasil, estão sendo feitas verdadeiras barbaridades sob o ponto de vista
jurídico e das conquistas civilizatórias em termos de Estado democrático de
Direito, com a complacência dos tribunais superiores. O Supremo e o STJ estão
avalizando práticas de primeiro grau que, evidentemente, são práticas ilegais.
Isso eu não consigo entender.
Sul21: O reitor da
Universidade Federal do Paraná escreveu um artigo na semana passada lembrando
que, em um ano, quatro das maiores universidades federais do país foram alvo de
operações da Polícia Federal com agentes fortemente armados e grande
repercussão midiática. Isso não parece ser uma coincidência…
Lédio Rosa de Andrade: Tudo indica que não é. Chama a
atenção a forma como essas operações vêm sendo feitas, com policiais
mascarados. Essas são situações incompatíveis com uma universidade. Por mais
que a polícia tenha que usar máscaras para algumas coisas com o objetivo de
salvaguardar o policial, nós estamos falando da universidade. Não é preciso
invadir a universidade com policiais mascarados. Não precisa nada disso.
Efetivamente, são coisas planejadas com o intuito muito claro de agredir a
universidade, que é o que está acontecendo.
Sul21: Na sua fala em
homenagem ao reitor Cancellier, o senhor disse que nós estaríamos vivendo a
pior das ditaduras. Em que sentido essa seria a pior das ditaduras?
Lédio Rosa de Andrade: Todas as ditaduras são ruins. Não
tem ditadura boa e ditadura ruim. Usei o termo “pior” no sentido das
dificuldades para combatê-la. Quando uma ditadura é ostensiva, como as
ditaduras militares que tivemos na América Latina ou ditaduras comunistas, onde
o Estado é o agressor direto e visível, você sabe que ali tem um inimigo e a
tendência é você se organizar para combater a violência ilegítima do Estado.
Agora, quando a ditadura vem travestida de justiça, como se estivesse fazendo o
bem e não o mal, para a maioria leva mais tempo para cair a ficha. Ela perdura
um tempo como algo bom e legitimado. Uma ditadura que consegue, através de um
discurso falso, de um discurso ideológico alienante e enganador, ter a
complacência e até o aplauso da população é uma ditadura que não será combatida
até que as pessoas se dêem conta de que foram enganadas. Por isso que eu digo
que ela é pior. Está travestida de bondade, quando, na verdade, é pura maldade.
Sul21: Como integrante
do Judiciário e professor de Criminologia na UFSC, qual a sua avaliação sobre o
papel que o poder Judiciário vem desempenhando em todo esse processo? A maioria
desse poder apoia as práticas que estamos vendo ou há uma disputa mais ou menos
equilibrada dentro dele?
Lédio Rosa de Andrade: O que tenho dito, onde tenho tido
espaço para me manifestar, é que o Judiciário, apesar de ser extremamente
conservador e reacionário em alguns casos, ainda não tem uma maioria que
compactua com os desrespeitos ao Estado Democrático de Direito. O que é
assustador é que maioria do Judiciário está absolutamente silenciosa. O que
está fazendo com que as pessoas se mantenham caladas assistindo a todas essas
barbaridades que estamos vendo. Isso é difícil de entender. Eu não diria que a
maioria dos integrantes do Judiciário tem uma postura ideológica fascista, como
são fascistas essas práticas sobre as quais estamos conversando. Apesar de
conservador, o poder Judiciário não tem uma maioria de membros fascistas. Ele
tem uma maioria de membros conservadores, isso sim.
Sul21: Como o senhor
definiria o papel que o Supremo Tribunal Federal vem desempenhando nesta
conjuntura?
Lédio Rosa de Andrade: Na minha opinião, o Supremo está
deixando escapar, inclusive simbolicamente, o resguardo irrestrito do sistema
constitucional. No momento em que avaliza práticas que afrontam o Estado
Democrático de Direito, como permitir a prisão das pessoas sem trânsito em
julgado, em nome da agilidade da Justiça. Isso afronta a Constituição
claramente. Não só isso. No momento em que o Supremo fica inerte diante do
desrespeito de suas próprias decisões como, por exemplo, a súmula 11, que
proíbe o uso de algemas salvo em situações onde a pessoa realmente represente
perigo. Hoje, a polícia vai na universidade, usa a condução coercitiva de forma
ilegal e o Supremo fica inerte, assistindo tudo isso pela televisão . Com isso,
ele perde a sua capacidade de ser o guia brasileiro do respeito ao Estado
Democrático de Direito.
Sul21: Na sua fala em
homenagem ao reitor, o senhor também fez um alerta e uma convocação sobre a
necessidade de lutar para enfrentar o retorno do fascismo no Brasil. Saindo da
esfera exclusiva do Judiciário, na sua visão, como essas práticas fascistas
estão se manifestando na sociedade?
Lédio Rosa de Andrade: O tema sobre o qual estamos falando
é de grande complexidade. Para entendê-lo, é preciso ir passo a passo. Todo o
Estado que passa por um processo de crise e que possui uma estrutura
sociopolítica injusta, cria na população determinados devaneios que são até
justificáveis em certa medida. A população que está submetida a uma estrutura
injusta de vida, que passa fome e necessidades materiais básicas, ela acredita
em qualquer coisa para enfrentar essa situação de penúria. Os valores do Estado
Democrático de Direito não fazem parte da vida cotidiana de milhões de pessoas
que vivem nas periferias. Essas pessoas não usufruem materialmente dos
benefícios do Estado Democrático de Direito que garante os direitos individuais
das pessoas incluídas. Já as pessoas excluídas não possuem, na democracia, um
valor de vida e trocam com muita facilidade qualquer valor democrático por
segurança e trabalho.
Se
vem um aventureiro, que tem por trás dele toda uma estrutura fascista de modo
vida mas promete segurança e trabalho, as pessoas aceitam isso. Elas não estão
preocupadas em preservar os valores da democracia porque estão passando
necessidades básicas mesmo. Eu não posso falar mal das pessoas que vivem nestas
condições. Nós não passamos fome, vendo os filhos chorar por que não tem o que
comer. O Brasil atravessa uma forte crise de injustiça social, que perdura por
anos, e a população está aceitando, no âmbito político, propostas que
sacrificam a democracia, prometendo algo que não vão cumprir.
Sul21: O senhor viveu o
golpe e a ditadura que se instalou em 64. Há alguma comparação que se possa
fazer entre o que aconteceu naquela época e o que estamos vendo hoje?
Lédio Rosa de Andrade: Uma das principais diferenças é a
conjuntura internacional. A ditadura de 64 foi estabelecida no contexto da
guerra fria com evidente patrocínio norte-americano. Foi um projeto mundial do
sistema capitalista que foi implantando ditaduras nos países periféricos. Isso
não existe mais com essas características. Mas o espírito fascista nunca
acabou. Seguem existindo pessoas com pensamento autoritário que não convivem no
seu cotidiano com os pressupostos do Estado Democrático de Direito. Isso segue
vivo e está ameaçando voltar.
Sempre
me preocupei mais com o cotidiano das pessoas do que com as teorias. Estas,
muitas vezes não dão certo porque não levam em conta que, lá na ponta, estão
seres humanos que vão agir ou não conforme a teoria. Milhares de pessoas têm
uma estrutura de pensamento que é fascista mesmo. O ser humano, psiquicamente,
se dá muito bem com a violência, gosta dela e a pratica com prazer. Estamos
sempre convivendo com isso.
Sul21: Em 2018, em tese,
teremos eleições. Considerando que elas ocorram numa situação de legalidade, em
que medida, na sua opinião, elas podem levar a uma superação da atual crise
política?
Lédio Rosa de Andrade: O sistema representativo da
democracia ocidental nem sempre é uma garantia de mudança. O sistema eleitoral,
para que tenha condições de mudanças, necessita de uma população que tenha
condições materiais de decidir. Uma coisa é o que acontece na Islândia, por
exemplo, onde o povo vai para a rua, derruba governo, impede o pagamento da
dívida resultante da exploração do sistema financeiro e colocam uma jovem
feminista para governar o país. Eles têm condições, sem rupturas maiores, de
mudar o país por meio do sistema representativo.
Não
acredito que o Brasil tenha condições de fazer isso. Obviamente não estou
defendendo o fim do sistema representativo e das eleições, mas precisamos
evoluir para que o nosso sistema representativo funcione de maneira onde as
pessoas, de fato, tenham condições materiais, de conhecimento e de educação
básica mínima para raciocinar e poder tomar uma decisão política sobre o que é
melhor para o país. Se mantivermos um processo eleitoral marcado pela
enganação, pelo engodo e falsas promessas, onde o dinheiro é o principal motor,
não temos como esperar grandes mudanças.
Sul21: Passados pouco
mais de dois meses da tragédia envolvendo o reitor Cancellier, qual é o clima
dentro da UFSC?
Lédio Rosa de Andrade: Foi muito difícil fechar o semestre.
As pessoas estavam muito abatidas em um ambiente de tristeza e desânimo
totalmente distinto da história da universidade. Foi um semestre muito difícil.
Agora, estamos em um momento de provas finais e de término de atividades.
Muitos dos professores terminaram as aulas mais cedo. Eu fui um deles. Não
tinha mais condições nem ambiente para seguir as aulas. Eu diria que ainda
estamos vivendo um momento de forte impacto, onde não se sabe bem o que vai
acontecer.
https://www.brasil247.com/pt/247/rs247/331520/%E2%80%98Em-muitos-pa%C3%ADses-civilizados-os-condutores-da-Lava-Jato-estariam-presos%E2%80%99.htm
Nenhum comentário:
Postar um comentário