O
consórcio das ditaduras do Cone Sul para eliminar opositores nasceu no Brasil,
afirma o ativista Jair Krischke
No
fim de novembro, a Itália iniciou o julgamento à revelia de três militares e um
policial civil brasileiros acusados do desaparecimento do ítalo-argentino
Lorenzo Viñas durante a ditadura.
Os
coronéis João Osvaldo Job, Carlos Alberto Ponzi e Átila Rohrsetzer e o delegado
Marco Aurélio da Silva, já falecido, integraram a Operação Condor, um consórcio
internacional de órgãos de repressão para caçar e eliminar dissidentes
políticos no Cone Sul.
A
“cooperação” envolveu o Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Bolívia.
Viñas militava no grupo argentino Montoneros e desapareceu nas proximidades da
gaúcha Uruguaiana em junho de 1980.
Pela
primeira vez agentes brasileiros da ditadura vão responder na Justiça por seus
crimes, infelizmente longe das fronteiras do País. “Provavelmente será a última
oportunidade de assistir à punição de repressores nativos por crimes contra a
humanidade”, afirma Jair Krischke, fundador e presidente do Movimento de
Justiça e Direitos Humanos de Porto Alegre e testemunha de acusação no processo
italiano.
A
relação de Krischke com a Operação Condor é pessoal e acadêmica. Em 1980, o
ativista havia sido incumbido de receber em Porto Alegre o padre Jorge Oscar
Adur, capelão dos Montoneros, enviado ao Brasil para acompanhar uma audiência
das Mães da Praça de Maio com o papa João Paulo II, em visita ao País.
Ardur
nunca chegou ao seu destino, assim como Viñas, que viajava ao Rio Grande do Sul
no mesmo dia. Desde então, Krischke dedica-se a reunir documentos e informações
a respeito da ação conjunta das ditaduras, além de denunciar os seus crimes. “A
Operação Condor foi inventada no Brasil”, garante.
CartaCapital:
Qual a sua avaliação do início do julgamento na Itália dos militares
brasileiros envolvidos na Operação Condor?
Jair
Krischke: As perspectivas são ótimas. A procuradora Tiziana Cugini é muito
interessada, atenta e detalhista. Os jurados acompanham com atenção o caso e a
juíza está disposta a escutar.
Não
costumo alimentar falsas expectativas, mas fiquei bastante satisfeito com a
condução do processo. Em março, teremos nova audiência, quando assistiremos aos
depoimentos de Claudia Allegrini, viúva de Lorenzo Viñas, e Silvia Noemí
Tolchinsky, ex-secretária do líder montonero Mário Firmenich e presa pela
repressão argentina quando tentava fugir para o Chile.
Ela
foi barbaramente torturada e levada a Paso de los Libres, para servir de
“marcadora”, para identificar outros militantes, na aduana da ponte que liga a
cidade a Uruguaiana, no Rio Grande do Sul.
CC:
Qual a importância desse julgamento na Itália para quem luta por verdade e
justiça no Brasil?
JK:
Provavelmente será a última oportunidade de assistirmos à punição de
repressores brasileiros que cometeram crimes contra a humanidade. Nossos
tribunais não têm tido a coragem cívica e jurídica para enfrentar o tema.
Chegam
ao ridículo de desconhecer o que a jurisprudência internacional consagrou:
crimes de lesa-humanidade são imprescritíveis. E mais: o sequestro e
desaparecimento de Lorenzo Viñas ocorreu depois da promulgação da lei da
anistia no Brasil, publicada em 28 de agosto de 1979.
O
governo brasileiro indenizou os familiares dos argentinos desaparecidos no
Brasil, incluídos Viñas e o padre Jorge Oscar Adur, assumindo a
responsabilidade do Estado nos crimes praticados por seus agentes, mas não teve
a coragem de puni-los na forma da lei.
CC:
Como o senhor se tornou uma testemunha no processo?
JK:
Os sumiços de Viñas e Adur ocorreram no mesmo dia e local. Na ocasião, o papa
João Paulo II era esperado em Porto Alegre.
As
mães da Praça de Maio, que tinham ido a Roma e à Cidade do México em busca de
uma audiência com o pontífice, sem sucesso, viriam ao Brasil para tentar
encontrar João Paulo II e denunciar os crimes da ditadura argentina. E
solicitaram meu apoio para convencer os bispos do Rio Grande do Sul.
Conversei
com o falecido dom Antonio Cheuiche, que, após muito esforço, logrou uma
audiência de cinco minutos com o papa. O padre Adur, capitão-capelão do grupo
Montoneros, foi escalado para acompanhar as Mães da Praça de Maio na audiência
e ser o portador de uma mensagem da brigada armada para os bispos brasileiros.
Os
repressores tinham conhecimento de sua chegada, dados a respeito de sua viagem.
Fui recepcioná-lo em Porto Alegre, mas ele não estava no ônibus. Denunciei o
desaparecimento às autoridades e à mídia, nacional e internacional. Por conta
do sumiço de Adur, soubemos de Viñas. Nos últimos 37 anos, nunca deixamos de
investigar e reunir o máximo de informações a respeito.
CC:
Não foi a primeira vez que o senhor depôs sobre o caso, certo?
JK:
Certo. Meu primeiro depoimento oficial foi prestado ao procurador Giancarlo
Capaldo em dezembro de 1999, na Embaixada da Itália em Buenos Aires. No mesmo
dia, estive na Justiça Penal Federal argentina, especificamente com o juiz
Claudio Bonadio. Em 2005, falei novamente à Justiça argentina em Paso de los
Libres.
No
ano, Capaldo solicitou-me um informe completo sobre o aparelho repressivo
brasileiro, sua estrutura e operacionalidade. Dizia ele que havia estudado os
sistemas dos países do Cone Sul e os entendido, mas no caso brasileiro ele
confessava uma dificuldade. Apesar de ter combatido incansavelmente a ditadura,
pela primeira vez sentei para escrever sobre o seu funcionamento.
CC:
O senhor diz que a Operação Condor foi inventada pelo Brasil. Pode explicar?
JK:
Não digo, provo com documentos que a Operação Condor, a colaboração dos
aparatos repressivos das ditaduras do Cone Sul, foi inventada no Brasil. Antes
de virar Operação Condor, chamava-se “Busca no Exterior”. O primeiro caso
documentado foi a captura em Buenos Aires do coronel Jefferson Cardim de Alencar
Osório, seu filho e um sobrinho, em dezembro de 1970.
A
segunda operação, igualmente documentada, ocorreu em junho de 1971, também em
Buenos Aires. A vítima se chamava Edmur Péricles Camargo. Contra documento não
há argumento. A não ser que seja falso, o que não seria difícil de se
comprovar. JK: A tal reunião serviu apenas para dar o nome de Condor, uma
sugestão do coronel uruguaio José Fins.
Foi
uma reunião de batismo para algo existente há mais tempo. Não é segredo que
dois militares brasileiros participaram do encontro em Santiago, em novembro de
1975. Declaram-se observadores e não assinaram a ata.
O
coronel Manuel Contreras, chefe da Direção de Inteligência Nacional do Chile,
convidou o general brasileiro João Figueiredo para a reunião, mas este foi
impedido de participar pelo então ditador Ernesto Geisel. Figueiredo, como se
sabe, substituiria Geisel no comando do regime.
CC:
O que o senhor achou do resultado da Comissão da Verdade instalada no governo
Dilma Rousseff?
JK:
A comissão serviu para jogar uma pá de cal no assunto. Tratou-se de um
verdadeiro insulto à cidadania e à história. Convocado por Rosa Cardoso a
depor, especialmente sobre a Operação Condor, respondi que iria com o maior
prazer, desde que meu depoimento fosse público (até então, acontecia a portas
fechadas).
Salientei
apenas que uma questão pontual não poderia deixar de ser tratada publicamente,
pois havia a oportunidade única de se tomar o depoimento de um destacado
“agente Condor” ainda vivo e lúcido em Montevidéu. O agente havia se tornado
pastor de uma dessas igrejas de vigarice. Na ocasião, acertamos uma viagem em
janeiro para ouvi-lo.
Ela
ficou para fevereiro, depois março. Quando entendi que não aconteceria nada,
fui a Montevidéu. Soube que ele acabara de morrer. Esta é uma de várias
decepções.
CC:
O senhor acredita que, a exemplo dos vizinhos, agentes da repressão e seus
chefes serão levados a julgamento no Brasil?
JK:
Nem quando morcego doar sangue. É o resultado do processo político brasileiro,
onde não ocorreu uma transição, tão somente uma vergonhosa transação. Aqui,
certamente nem o cabo da guarda será molestado um dia, irá a Justiça, quanto
mais os seus superiores.
https://www.cartacapital.com.br/revista/982/a-operacao-condor-foi-inventada-no-brasil
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