O
professor Joaquim Falcão publicou contundente artigo no jornal Folha de S.Paulo
(10/11) dizendo que, em nosso país, o direito à defesa dos direitos individuais
tem sido bastante assegurado, mas o combate à corrupção sistêmica, não.
Disse
que o réu, hoje, não é A e nem B. É a corrupção sistêmica. Nesse ponto,
advogados seriam contratados mais para estender os processos do que para
defender os réus. Adiar é vencer — esta seria, diz Falcão, a meta.
E,
para isso, entraria em campo o Supremo Tribunal Federal, que é o culpado pela
impunidade, uma vez que o "nosso direito processual é moldado pelo
individualismo liberal".
Esse
tipo de tese ou discurso também é velho. Para combater o crime, especialmente a
corrupção "sistêmica", o devido processo legal de cunho
individualista é insuficiente, ineficaz. Necessitaríamos — e isso fica
implícito em Falcão — de um discurso punitivo 3.0, um direito com velocidade
adaptada às necessidades fáticas.
Lembro
que, por vezes, alguns discursos sociologistas caem nessa armadilha. O direito
é caminho muito curto para alcançar fins "justos". Constituição e
códigos viram filigranas que atrapalham.
Até
um sociólogo de esquerda, Boaventura Santos, caiu nessa trampa, em 2009, ao
dizer que, em Portugal, o processo Casa Pia poderia ser resolvido mais
rapidamente se juízes tivessem mais poder, isto é, se não tivessem tantos
prazos e garantias a favor dos réus. Como se cumprir o protocolo processual
fosse coisa ruim. Compreendo que sociólogos digam isso, mas juristas não devem
fazê-lo.
Esse
discurso de que garantias atrapalham e estimulam a impunidade já está ficando
cansativo. Trata-se de um discurso outsider, que serve sempre para o
"outro".
Qualquer
pessoa acusada gostaria — e gosta — de ter a seu favor todos os mecanismos
processuais, como ocorre em qualquer democracia. É uma falácia dizer que nosso
sistema processual estimula a impunidade, por ser de índole liberal. Qual seria
o processo "não liberal"? Um direito totalitário? Um direito que
suprimisse instâncias ou que ignorasse (ou admitisse) prova ilícita? Algo como
uma das cláusulas do Pacote Anticorrupção?
E,
é claro, o julgamento de Aécio Neves veio à tona na fala de Falcão. Como se o
Supremo Tribunal Federal tivesse errado, e isso fosse produto de uma conspiração
antidemocrática —nas palavras de Falcão, o caso Aécio foi uma operação
antidemocrática (sic).
Ora,
parece que, para o articulista, só se cumpre a Constituição Federal quando se a
lê de forma finalística. Como se a Constituição fosse instrumento de combater
crime. Não. A Constituição é garantia contra o poder autoritário estatal. É
remédio contra maiorias. Se necessário, deve-se usar a Constituição contra o
clamor das ruas.
Várias
lendas vêm sendo espalhadas contra o STF. Uma, dizendo que o foro privilegiado
é responsável pela impunidade, quando se sabe que os processos de primeiro grau
prescrevem em número bem maior que no STF. E não há recurso contra decisões do
STF.
Outra
é que o STF é conivente com grandes autoridades, sendo leniente. Que se mostre
um caso. Ao contrário: poderia dizer que a presunção da inocência foi
fragilizada por atendimento ao clamor público. E desse julgamento Falcão
gostou. Não seria melhor, então, acabar com a CF? Pôr o quê no lugar? Um
discurso sociológico-teleológico?
*Artigo
originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo no dia 14/11 com o título
Corrupção sistêmica? E a culpa é do STF?
Lenio Luiz Streck é
jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do
escritório Streck e Trindade Advogados Associados.
Revista Consultor
Jurídico
https://www.conjur.com.br/2017-nov-14/streck-constituicao-garantia-poder-autoritario-estatal
Nenhum comentário:
Postar um comentário