Sabe-se
que a segurança é direito fundamental de todos os cidadãos (artigo 5º, caput da
CF) e que a segurança pública consubstancia a um só tempo dever do Estado e
direito e responsabilidade de todos (artigo 144 da CF). Daí ter o constituinte
originário outorgado aos órgãos policiais as tarefas de prevenir (polícia
administrativa) e reprimir (polícia judiciária) infrações penais.
No
desempenho de suas funções, uma das principais atividades das forças de
segurança é a abordagem policial, também denominada de busca pessoal.
Consubstancia-se
na inspeção do corpo do indivíduo e sua esfera de custódia (vestimenta,
pertence ou veículo não utilizado como habitação), com a finalidade de evitar a
prática de infrações penais ou encontrar objeto de interesse à investigação[1].
Diferentemente
da busca e apreensão domiciliar, a busca pessoal independe de mandado judicial
e pode ser realizada a qualquer tempo. Deve ser feita em diferentes níveis
conforme o grau de ameaça, seguindo o uso proporcional da força
(desincentivando o uso de expressões pejorativas como dura e baculejo)[2].
Em
razão da natureza de sua atividade (polícia administrativa) e da
disponibilidade numérica (maior efetivo dentre as forças policiais), os
policiais militares são os que mais fazem revistas diuturnamente nas vias
públicas, na modalidade preventiva.
A
abordagem policial é concretizada por um ato administrativo imperativo,
autoexecutório e presumidamente legítimo. Traduz materialização do poder de
polícia estatal (discricionário, autoexecutório e coercitivo) na limitação da
liberdade ou propriedade em nome do interesse público[3]. Acarreta
inegavelmente certo grau de constrangimento, que deve ser suportado pelo
cidadão em nome da pacífica convivência em sociedade.
Evidentemente
isso não significa que o policial possa agir com arbitrariedade. O poder de
polícia do Estado é marcado pela proporcionalidade. Nesse contexto, salta aos
olhos a importância da fiscalização. O controle é fundamental para dar
legitimidade à atuação do poder público (inclusive das polícias), garantindo a
adequação das condutas dos agentes públicos à franquia constitucional de
liberdades.
Uma
das principais formas de fiscalização é o chamado controle externo popular, por
meio da qual qualquer pessoa pode, na qualidade de cidadão, questionar a
legalidade de determinado ato e pugnar pela sua validade[4]. Assim se evita que
o uso do poder se convole em abuso do poder, seja por excesso de poder ou
desvio de finalidade (artigo 2º da Lei 4.717/65).
Nesse
sentido, a abordagem policial deve seguir o propósito definido em lei
(prevenção ou investigação), com uso da força estritamente necessária (artigo
284 do CPP, artigo 2º da Lei 13.060/14 e artigo 3º do Código de Conduta para os
Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei – Resolução 34/169 da ONU).
Muitas
vezes o cidadão (que por vezes é um repórter), ao presenciar uma abordagem
policial, resolve registrar a atuação fotografando ou filmando (com câmera
profissional ou um simples smartphone), como forma de fiscalizar a ação
estatal, especialmente quanto ao uso da força.
Ocorre
que em algumas situações[5] o policial militar, sentindo-se incomodado com a
fiscalização sobre o seu trabalho, arrecada[6] o aparelho do indivíduo e o
conduz para a delegacia de polícia, seja pela alegada prática dos crimes de
desobediência e desacato, ou por supostamente ser uma testemunha obrigatória
dos fatos. Trata-se de atuação equivocada do miliciano.
O
cidadão pode perfeitamente fiscalizar a ação dos agentes públicos sem
atrapalhar o desempenho da missão pública e sem alterar a cena do crime.
Registrar à distância a busca pessoal em nada prejudica a abordagem policial.
Evidentemente deve se identificar quando solicitado (artigo 68 da LCP), e
eventual divulgação do material deve ser desacompanhada de ofensas aos
envolvidos ou desacato aos policiais.
Quanto
ao cidadão em geral, vale lembrar que o princípio da legalidade (artigo 5º da
CF) preconiza que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei", e inexiste vedação legal para que uma
pessoa registre fatos em vias públicas. Importante destacar que o postulado da
legalidade surgiu com o Estado de Direito, opondo-se a toda e qualquer forma de
poder autoritário e antidemocrático, sendo previsto na própria Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão[7].
Caso
o fiscalizador seja repórter, acrescente-se que a liberdade de imprensa (artigo
220 da CF) é importante direito fundamental que permite à população ter acesso
amplo à informação e a melhor controlar os atos do Estado. Cuida-se de
patrimônio imaterial, sendo irmã siamesa da democracia, devendo desfrutar de
uma liberdade de atuação extremamente ampla[8].
Logo,
não pratica qualquer delito aquele que registra fatos acobertados pela
publicidade; o miliciano que restringe a liberdade do cidadão indevidamente é
que pode incorrer em abuso de autoridade.
Além
disso, o indivíduo não necessariamente deve figurar como testemunha pelo
simples fato de ter registrado a abordagem policial. Isso só deve acontecer se
inexistir outro indivíduo que tenha presenciado os fatos. De toda sorte, a
decisão sobre sua oitiva e sobre a utilização do registro será tomada pelo
delegado de polícia, e não pelo policial militar, que é um agente da autoridade
policial. E mesmo que o cidadão seja chamado a narrar o acontecimento, inexiste
motivo para apreensão do equipamento quando cópia do vídeo ou imagem puder ser
extraída instantaneamente na delegacia. Essa observação ganha especial
relevância quando se tratar de jornalista, que tem na sua câmera um instrumento
de trabalho.
Não
custa pontuar que a regra de proibição de depor como testemunha (artigo 207 do
CPP) não se aplica a jornalista, pois o segredo que deve ser mantido por esse
profissional é o da origem da informação (sigilo da fonte, ou seja, identidade
do informante), e não da informação em si[9]. Entretanto, repita-se, só deve o
repórter atuar como testemunha em casos estritamente necessários e nunca como
forma de intimidação ou de cerceamento da profissão.
Portanto,
o uso de câmeras não é proibido, pelo contrário, deve ser estimulado tanto pela
população, pelos jornalistas e pelos próprios policiais, seguindo tendência
mundial. Esse proceder melhora a atuação dos agentes da lei e também dos
próprios suspeitos, que se sentem desestimulados a levar adiante reclamações
improcedentes, como demonstra estudo[10]. É dizer, a filmagem não serve apenas
para incriminar, mas também para demonstrar que a atuação firme da polícia
seguiu os parâmetros legais[11].
[1]
HOFFMANN, Henrique. Aspectos jurídicos da busca e apreensão. BEZERRA, Clayton
da Silva; AGNOLETTO, Giovani Celso (Org). Busca e Apreensão. Rio de Janeiro:
Mallet, 2017, p. 21-119.
[2]
HOFFMANN, Henrique. "Além de investigativa, busca pessoal pode ser preventiva".
Revista Consultor Jurídico, set. 2017. Disponível em:
.
Acesso em: 5.set.2017.
[3]
MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 340.
[4]
CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. Salvador: Juspodivm, 2015,
p. 376.
[5]
A título de exemplo: "Jornalista preso após filmar abordagem da PM em
Vitória é liberado". G1, jul. 2017. Disponível em:
https://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/jornalista-preso-apos-filmar-abordagem-da-pm-em-vitoria-e-liberado.ghtml.
Acesso em: 10.jul. 2017; "PM inventa lei para repreender homem que filmava
ação policial; veja flagrante". G1, fev. 2017. Disponível em:
https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/pm-repreende-homem-que-filmava-acao-policial-com-telefone-celular.ghtml.
Acesso em: 21.fev. 2017.
[6]
Tecnicamente a imediata e precária inversão da posse do bem feita pelo agente
da autoridade policial (policial militar, guarda municipal ou policial
rodoviário federal) consiste em mera arrecadação; o objeto só estará
juridicamente apreendido com a decisão do delegado de polícia no sentido de ser
lavrado o devido auto de apreensão.
[7]
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2014,
p. 1078.
[8]
STF, ADPF 130, rel. min. Carlos Britto, DJE de 6/11/2009.
[9]
VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. O sigilo da fonte de informação jornalística como
limite à prova no processo penal. Brasília: Gazeta Jurídica, 2015, p. 187.
[10]
ARIEL, Barak; SUTHERLAND, Alex; HENSTOCK, Darren, YOUNG, Josh; DROVER, Paul;
SYKES, Jayne; MEGICKS, Simon; HENDERSON, Ryan. “Contagious Accountability”: A
Global Multisite Randomized Controlled Trial on the Effect of Police Body-Worn
Cameras on Citizens Complaints Against the Police. In: Criminal Justice and
Behavior, v. 44, p. 293-316.
[11]
A título de curiosidade, mencione-se que tampouco existe restrição para a
filmagem da fachada do prédio da PM, porquanto a “área de segurança”, cujo
arcabouço legislativo se pauta na Resolução Contran 302/2008, restringe tão
somente o estacionamento de veículos. Nesse sentido: TJ-SP, RN
1019312-24.2016.8.26.0053, rel. des. Fermino Magnani Filho, DJ 28/8/2017.
Henrique
Hoffmann é delegado de Polícia Civil do Paraná. Professor do Cers, do Supremo,
da Escola da Magistratura do Paraná e de Mato Grosso, da Escola do Ministério
Público do Paraná e da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná. Mestrando em
Direito pela Uenp e autor de livros e palestrante. www.henriquehoffmann.com
Eduardo
Fontes é delegado da Polícia Federal, professor do Cers e especialista em
Segurança Pública e Direitos Humanos pela Uniso.
Revista
Consultor Jurídico
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