Não chegou até
Montesquieu e ficou parado em Maquiavel
Comentário à publicação
"Sem um Estado forte, outro Poder mandará, por André Araújo”.
O
autor do artigo confunde Estado forte, com executivo forte. No meu entender,
erro crasso, em se tratando do mundo político democrático e constitucional em
pleno século XXI. É preciso ir muito além de Maquiavel e, pelo menos, chegar a
Montesquieu e o Espírito das Leis que define a tripartite separação de poderes
que o Brasil incorporou em sua cultura política republicana desde o final do
século XIX.
Importante
ressaltar que o executivo no presidencialismo constitucional que vivemos há
décadas, de modo algum pode ser comparado com o Príncipe de Maquiavel. Além
disso, não se pode esquecer que Maquiavel, que viveu no século XVI, estava
exilado de sua cidade Estado (coisa que não temos em nosso contexto), Florença.
Portanto, esta história de homem forte de um Estado forte confundido com o
poder executivo, só uma única vez se concretizou, no livro de Maquiavel.
Entretanto, é bom não esquecer que este livro foi escrito para bajular a
família Médici (os detentores do capital financeiro desta casa italiana que fizeram
o mecenato que é parte do Renascimento e dois papas; afinal, os Medicis eram os
banqueiros que financiavam o Vaticano, que, na época, dominava territorialmente
todo o centro da Itália e nada se parece com o Vaticano de hoje).
O
preço que Maquiavel teve que pagar pela bajulação foi alto. A Itália só seria
unificada em meados do século XIX e não como queria Maquiavel (evidentemente,
séculos antes, numa Itália feudal e toda dividida em cidades principados e
repúblicas cidades Estado, Maquiavel só tinha como referência Roma e Grécia
antigas, porque os conceitos que fundamentam os atuais Estados modernos ainda
estavam em gestação incipiente e iam muito além de Aristóteles e o mundo antigo
redescoberto pelo Renascimento).
Portanto,
utilizar o raciocínio de Maquiavel, passando por cima de séculos de
desenvolvimento da teoria política, sem sequer chegar ao século XVIII e a
Montequieu e Rousseau (muito menos ao século XIX e XX), é completamente
anacrônico e ineficiente como referência teórica séria para analisar a atual
situação política brasileira. Sem falar que é passar por cima das
especificidades históricas da política brasileira desde a era colonial (que era
governada pela Coroa absolutista portuguesa com suas especificidades bem
distintas do que está escrito no Príncipe de Maquiavel). Mas muito conveniente
para colocar lenha na fogueira de Savonarolas (que perseguiu Maquiavel e a
família Médici e todos os artistas do Renascimento) que querem tomar o poder no
Brasil para instalar mais uma ditadura monocrática que nem a ditadura militar
aceitou (porque os militares udenistas que deram o golpe de 1964 eram tão anti
getulistas que evitaram encarnar, em si mesmos, o que Getúlio havia
representado para eles, um ditador pessoal e inventaram esta fórmula só
existente no Brasil, uma ditadura militar, da corporação, não de um general em
específico, mantendo as aparências de uma república presidencialista com
separação dos três poderes).
Ora,
o conceito de Estado é mais amplo do que somar duas corporações em aliança política
por meio de um executivo forte.
Há
elementos de verdade empírica misturados com grandes equívocos de avaliação
sobre as estruturas e conjunturas políticas atuais brasileiras. Podem passar
despercebidos para quem não conhece um leque maior de referências teóricas
políticas e se impressiona com a citação única, fora de contexto, de Maquiavel.
Mas não quem tem um mínimo de formação historiográfica e em ciências sociais
(ou em filosofia política) e não parou seu conhecimento teórico e prático sobre
esta temática no século XVI e na Europa mediterrânea.
O
artigo destaca outras leituras possíveis, à revelia do autor, dentro de um
diagnóstico semelhante, que vão muito além dos equívocos de percepção analítica
do autor: o que precisamos é que os três poderes da República encontrem meios
factíveis e práticos de restaurarem a harmonia dos três poderes que está
rompida. Uma volta ao Espírito das Leis de Montesquieu é muito mais eficaz do
que invocar um Príncipe que absorve os três poderes em um só, o executivo.
Isto, por incrível que pareça, está mais para o que os ideólogos do golpe
chamam de bolivarianismo. Tudo o que o Brasil não foi até 2014 e até o golpe de
Estado parlamentar de 17 de abril de 2016. Os golpistas todos, desde os do
judiciário, da polícia federal e ministério público hipertrofiados, como
identifica corretamente o artigo, é que instalaram um movimento
bolivarianista com as cores do verde e amarelo e declarações bolivarianas de um
general que não sabe usar uma calculadora eletrônica e ainda se vale de tábua
de logaritmos...
O
STF tem que fazer o movimento contrário que levou ao golpe de 2016, para
restaurar a harmonia, mantendo a independência de poderes, e o Estado de
Direito, duramente atacado, inclusive pelos erros históricos do próprio STF
(constituído de seres humanos falíveis, não de deuses do Olimpo). São as
próprias instituições representativas do poder que emana do primeiro artigo da
Constituição de 1988 que devem reconstruir a democracia seriamente ameaçada,
evitando exatamente a ficção teórica de Maquiavel (que só ocorreu no livro
dele, não na história concreta da Itália ultra dividida de seu tempo). Não
precisamos de príncipe algum, mas de voltar ao Contrato Social de Rousseau e
seu conceito de vontade geral (que não significa o somatório de vontades de uma
sociedade, nem maiorias e minorias específicas dentro de um parlamento
representativo porque a ênfase de Rousseau é na democracia direta e numa
síntese dialética completamente avessa ao pensamento cartesiano linear de um
general que usa tábua de logaritmo).
E
o primeiro e grande movimento que se tem que fazer é respeitar o calendário
político brasileiro que prevê que o ano que vem é o ano de eleições gerais,
menos municipais. Livres, diretas e sob a vigências das regras da Constituição
de 1988; sem golpismos jurídicos e ameaças inconstitucionais de intervenção
militar. Faltam pouco mais do que três meses para chegarmos ao ano que vem que
irá, finalmente, colocar de volta o chamamento ao primeiro artigo da
Constituição de 1988.
Ao
contrário dos oportunismos e sofismas dos golpistas de 2016, não vivemos em uma
república parlamentarista, mas em uma república presidencialista, com separação
clara entre os três poderes (que são independentes entre si, mas devem atuar em
harmonia institucional e constitucional). A fonte primeira é última de todos os
três poderes é o povo como diz o artigo primeiro da Constitucional. Todos os
três poderes da república presidencialista brasileira são representativos da
fonte original dos poderes. Portanto, o fortalecimento do Estado brasileiro
passa necessariamente pela fonte primária dos poderes instituídos de forma
representativa.
Quem
tutela a Constituição de 1988 é o voto popular, como diz seu primeiro artigo.
Não uma instituição à parte, como o exército (não é o exército que tutela a
constituição, mas a constituição que tutela o exército). Muito menos, um
príncipe, ou ditador pessoal que nunca poderá ser contundido com o executivo
que engole o Estado (ainda mais neste século e num país complexo como é o nosso).
Também não há tutelas do poder judiciário sobre a democracia brasileira, cuja
fonte primeira é o interesse público, não interpretações e ações individuais
deste ou daquele juiz, de primeira, segunda, terceira ou seja lá qual instância
(nenhum deles está ali para impor sua vontade pessoal, de acordo com
interpretações subjetivas muito elásticas que não estejam em conformidade
estrita com o ordenamento jurídico brasileiro que não nasceu agora, mas tem uma
longa história). Ninguém está acima da lei, nem abaixo dela, a começar pelos
juízes e promotores. E o exército que não é a fonte original dos poderes da
república (não conquistamos nossa democracia pela força das armas, mas do
voto).
http://jornalggn.com.br/noticia/a-democracia-e-poderes-na-visao-de-montesquieu-para-entender-politica-atual
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