Para
a filósofa e professora Marcia Tiburi, a propaganda nazista está na linha
direta que leva ao surgimento da sociedade do espetáculo numa espécie de
círculo vicioso. Portanto, segundo ela, a intimidade entre fascismo e ridículo
político é evidente. A gaúcha de Vacaria, mestra e doutora pela UFRGS, não é
uma filósofa qualquer. É filósofa, romancista e ensaísta. Mas hoje, ela prefere
mesmo ser chamada de professora. Principalmente depois que a categoria começou
a ser atacada pela turma da “escola sem partido”. Uma professora que atendeu o
Extra Classe no meio de uma maratona que incluiu suas aulas no Rio de Janeiro,
uma ida a São Paulo, uma palestra em Florianópolis e uma aula sobre Juan Rulfo,
em Curitiba.
Sem
deixar nunca deixar a simpatia de lado, a professora Marcia, mesmo tendo que
reler Pedro Páramo inteiro para o último compromisso que listamos, em hipótese
alguma deixou o Extra Classe sem respostas, falando um pouco mais dos seus
últimos trabalhos. Depois do sucesso do seu livro Como conversar com um
fascista (Record 2015) ela lança pela mesma editora o Ridículo Político,
outro ensaio que, parafraseando alguns membros do nosso diligente Ministério
Público, está no timing correto, analisando a política e o fazer política em
nossa atualidade.
Extra Classe – Usando
uma palavrinha da moda no mundo das artes, em que o Ridículo Político ‘dialoga’
com o seu livro anterior Como conversar com um fascista?
Márcia Tiburi – De fato, os livros podem ser lidos
tendo em vista o diálogo entre eles. Em Como conversar com um fascista, eu
tentei mostrar que o ódio não é um afeto natural, mas que ele se prolifera
pelos discursos e que esse discurso se tornou um capital. As pessoas não
imaginam como são “afetadas” pelas falas dos outros e pelos discursos vigentes.
As pessoas “odeiam” tanto, em grande medida porque há muito estímulo ao ódio.
Não há ódio sem linguagem, sem expressão de ódio, sem exposição de ódio. Mas
odiar é mais do que um afeto, é também um jogo de linguagem.
Um
jogo em que quem pode mais chora menos. Odiar virou moda em uma época em que o
desvalor se torna um valor. A mesma
coisa acontece com o ridículo. Ele é algo negativo que se torna valor, no
sentido de capital mesmo. Em nossa época, aqueles que não se importam em cair
no ridículo podem tirar vantagem dele. Muitos aprendem a fazer uso do que é
vergonhoso como vantagem política. Em Ridículo Político eu tento colocar a
atenção na estranha capitalização que vem acontecendo por meio do discurso
preconceituoso e das cenas vexatórias. O que antes causava vergonha,
transformou-se em mérito. E isso constitui uma profunda mutação na cultura
política. O papelão é a moeda da política transformada em publicidade na era do
espetáculo.
EC – Sabemos que a
retórica fascista é vazia, pois não apresenta ideias ou argumentos que fujam ao
senso comum, mostrando-se alheia a qualquer limite ou reflexão. Neste contexto,
o fascismo além de perigosos também é um ridículo político?
Marcia – O fascismo sempre teve algo de
espetacular. Hitler, e Mussolini em certa medida, não seria ninguém sem a
propaganda que ele ajudou a criar. Eles fazem parte da pré-história do que
ainda chamamos de fascismo, a postura que nega o outro em um sentido cognitivo,
ético e político. O discurso fascista vive de clichês e de um certo modo de
aparecer. Um fascista quer aparecer mesmo que não tenha nada a dizer. Ele sabe
que o mero aparecer rende capitalização na cultura do espetáculo. A propaganda
nazista está na linha direta que leva ao surgimento da sociedade do espetáculo
numa espécie de círculo vicioso. A intimidade entre fascismo e ridículo
político é realmente evidente, sobretudo se pensarmos no poder de
capitalização, de influência que os discursos preconceituosos, de ódio, os
clichês expostos sem vergonha, tem sobre as pessoas e a sociedade como um todo.
EC – Já no prólogo do
seu novo livro, mesmo brincando, você diz “Se o leitor espera divertir-se,
deixe-o agora ou cale-se para sempre”. Não tens medo, de cara, de perder o seu
leitor (risos)?
Marcia – Eu confio na inteligência de quem
lê o meu livro. O título de “Como conversar com um fascista” já era uma ironia
que, por sorte, muita gente percebeu. Foucault disse em algum lugar que
desejava a maldade do leitor. Como professora de filosofia, eu posso dizer o
mesmo, não me interessa um leitor conformado. Nesse sentido, a ironia é uma boa
maldade. O contrário da má fé que vemos hoje naqueles que fingem que não
entendem e da fraqueza cognitiva daqueles que não entendem mesmo. Há pessoas
que não gostam do meu livro e nem o leram. Não argumentam, e muitas vezes o
xingam, ou xingam a mim. E isso não apenas entre aqueles que hoje praticam
abertamente o discurso de ódio. Eu soube de um professor de uma importante
universidade que não leu o livro e falou muito mal dele, e de mim, inclusive
confessando em aula que ao entrar nas livrarias, escondia o meu livro atrás de
outros. E era um professor alinhado com a esquerda. Cito esse caso, para que
vejamos que o avanço da tendência fascista vai muito mais longe do que se
imagina. Infelizmente, uma postura como essa apenas comprova concretamente as
minhas teses. O próprio sucesso e o ódio que há contra o livro dão a ele certa
centralidade na cena brasileira desse momento.
EC – Você fala do hábito
de não tratar com seriedade as coisas políticas. Isso, na sua opinião, vem, no
Brasil, com o certo desalento com tudo o que está acontecendo ou deixa de ser
um fenômeno conjuntural e permeia a história?
Marcia – Talvez seja possível buscar essa
falta de seriedade na história no sentido de que as pessoas talvez não tenham
se preocupado muito com o poder no momento em que deveriam ter feito isso. Mas
seria conjecturar no vazio desde que não temos como escrever uma história do
descaso. A história é a história do descaso, mas não temos acesso a ele. A meu
ver, esse descaso, cujo conteúdo não conseguimos acessar, vem se aprofundando.
Deixamos de lado, aquilo que não conseguimos resolver. Não se trata, portanto,
de falta de seriedade em função de um gosto pela piada. Mas de uma incapacidade
de nos relacionarmos com a coisa política. E, nesse sentido, de cuidar da coisa
política. Eu me refiro, portanto, mais à falta de seriedade que surge na
eminência de perigos que podemos avaliar. Porque pensamos que a vida se resolve
em termos de economia, deixamos de lado a política. Mas essa visão nos foi
vendida, não é autêntica. Ela nos foi vendida pelo neoliberalismo.
EC – Você afirma que
perceber a relação entre a política e a estética é algo cada vez mais urgente.
Sem a óbvia resposta, leiam o livro por favor (risos) poderia nos dar uma
pincelada sobre o isto?
Marcia – Às vezes eu realmente tenho que
sugerir isso, pois é incrível a quantidade de pessoas que falam sem demonstrar
ter lido. Me impressiona que um livro possa incomodar tanto. Não é,
evidentemente, o caso diante de sua pergunta que me pede para expor um pouco
mais o meu ponto de partida. Em termos muito simples, quando falo de estética e
política, estou me referindo tanto ao teatro da política, do aparecer em
política, quanto ao universo daquilo que podemos chamar de sensibilidade
psicossocial, os afetos que fazem parte do cotidiano político, não apenas do
macropoder, mas do micropoder, do simples cidadão. A meu ver, se não
compreendermos essa esfera não saberemos muita coisa sobre política.
Atualmente, as pessoas falam demais sobre política sem conhecimento de causa e
isso não tem ajudado a produzir mais discernimento.
EC – Se para você
política não é algo que se destrói, mas algo que se transforma, em que se
transformou a política no Brasil?
Marcia – Você já ouviu neurocientistas
dizerem que o cérebro é plástico? Ou seja, que ele se molda, que ele se adapta?
Pois podemos dizer que a política tem a mesma qualidade plástica. Ela se molda,
ela se adapta, ela é absolutamente moldável. Infelizmente, atualmente ela tem
sido apenas manipulável para os fins de interesses privados contra os fins
públicos que importam a um país e a uma sociedade democrática. Podemos dizer
que a política vem sendo manipulada na direção da publicidade. Nossos
representantes se apresentam como bufões e canastrões de um mau teatro com um
péssimo enredo. No entanto, não devemos perder as esperanças, pois a política
pode ser transformada em outra coisa, vai depender do nosso desejo. Aí mora um
problema imenso, mas é esse o que deveria ser resolvido. Pois se não houver
desejo não haverá entendimento, compreensão e transformação concreta do estado
atual da política.
EC – Com a vitória de
Trump nos EUA e a ameaça de quase chegada ao poder de Marine Le Pen, da Frente
Nacional (de extrema direita) na França, como você avalia a política
contemporânea no mundo. O ridículo também está presente?
Marcia
– De fato, não estou falando de um fenômeno brasileiro apenas. A questão é
global, em todos os sentidos. Não foram os brasileiros que inventaram isso, mas
o Brasil nesse momento serve de exemplo. A Itália de Berlusconi, os EUA de
Trump impressionam, mas podemos buscar a aparição do fenômeno em vários outros
lugares. Trata-se de uma tendência dominante que tanto demonstra a falta de
criatividade em política, como um perigo de destruição generalizada dos valores
políticos conhecidos ate aqui.
EC – Você diz que
ninguém quer ocupar a posição ridícula, apesar de falar da instrumentalização
do ridículo na política. No Brasil nós temos os famosos candidatos folclóricos,
alguns, inclusive, com votações expressivas como o caso de Enéas Carneiro, candidato
três vezes à presidência da República (1989, 1994, 1998) que com o sua
agilidade de raciocínio e fala, além do famoso bordão “Meu nome é Enéas!, foi
eleito Deputado pelo estado de São
Paulo, com a maior votação já registrada no país para a Câmara Federal (mais de
1,57 milhão de votos). Votação, aliás, que quase foi batida por Tiririca,
também de São Paulo, que com o seu bordão “Pior que está não fica”. Eles estão
em que pé?
Marcia – Esse é justamente o paradoxo do
ridículo político, ninguém quer ser menosprezado por meio do ridículo, já que o
ridículo implica uma desvalorização. Ninguém quer essa marca, mas aquele que
ela assinala, adquire um valor. Isso não acontece ao natural, digamos assim. Os
exemplos trazidos por você são todos perfeitos. Nenhum desses cidadãos se
promoveu politicamente por meio do reconhecimento de algo como “competência” ou
capacidade. Nenhum deles representava nada de admirável, de nobre ou sublime,
digamos assim, muito menos de belo e verdadeiro, para usar termos antigos que
em momentos diversos da história humana designaram valores estéticos e morais.
Todos foram votados porque apareceram como personagens histriônicos, imagens,
“personas”, no sentido de máscaras mesmo, com textos específicos, bordões,
clichês, falas prontas. Quem cresce e aparece é porque se torna personagem,
“figura”. Podemos citar candidatos eleitos em diversas cidades e estados pelo
país afora. Os agentes populistas mais canastrões estão por aí exercendo seus
governos de fachada. O que eu quero dizer com isso, não é que a política perdeu
o estilo, pois há personagens também no passado, mas que o “estilo” do momento
acoberta uma tremenda inconsistência política. Me refiro ao conhecimento, à
capacidade mesma de governar visando a complexidade de um país. Quando ouvimos
o discurso baseado em clichês, não estamos só diante de um ignorante que se
elegeu, mas estamos diante de um caso de ignorância que foi capturada para
efeito do poder. A ignorância tornou-se capital político, percebe?
http://www.diariodocentrodomundo.com.br/marcia-tiburi-o-fascismo-e-o-ridiculo-andam-juntos/
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