sábado, 27 de abril de 2024

JUÍZA DETERMINA TUTORIA COMPARTILHADA DE CACHORRA EM AÇÃO DE DIVÓRCIO


Decisão reconheceu a importância dos animais de companhia no contexto familiar e o bem-estar do pet.
 
A juíza de Direito Teresa Cristina Castrucci Tambasco Antunes, da 2ª vara da Família e Sucessões de São Paulo/SP, deferiu pedido de tutela de urgência em uma ação de divórcio para definir tutoria compartilhada de um animal de estimação entre o casal.
 
A magistrada determinou que o pet deve permanecer uma semana com cada uma das mulheres, retirando-o na residência com quem ele estiver às sextas-feiras às 19 horas.
 
Na decisão, a magistrada citou precedente do STJ que reconhece os animais de companhia como seres dotados de sensibilidade, cujo bem-estar deve ser considerado em decisões legais que afetam sua guarda.
 
Pet deve permanecer uma semana com cada uma após divórcio.
 
A magistrada sublinhou a evolução dos modelos de familiares e a necessidade de a ordem jurídica refletirem as relações.
 
"Os animais de estimação passaram a ter relevância com a nova configuração do modelo de família, quiçá com status de membros da entidade, sendo certo que a ordem jurídica não pode, simplesmente, desprezar o relevo dessa relação do humano com seu animal de estimação."
 
Assim, deferiu o pedido de tutoria compartilhada.
 
O caso tramita em segredo de Justiça.
 
https://www.migalhas.com.br/quentes/406188/juiza-determina-tutoria-compartilhada-de-cachorra-em-acao-de-divorcio

JUSTIÇA DETERMINA QUE FILHOS PAGUEM PENSÃO ALIMENTÍCIA À MÃE IDOSA


Cinco irmãos terão de pagar à mãe idosa, de 88 anos, pensão alimentícia no valor de 10% do salário mínimo nacional cada um deles. A decisão, proferida no dia 18 de abril, é da 8ª Câmara Cível do TJRS, que manteve a determinação em caráter provisório da Vara de Família da Comarca de Gravataí. A idosa ingressou no judiciário com ação de alimentos, pedindo auxílio financeiro aos filhos. O caso segue em tramitação no 1º grau para análise do mérito.
 
O relator dos recursos, desembargador José Antônio Daltoé Cezar, destacou que o pedido contra os descendentes tem fundamento em lei. Citou o artigo 229 da Constituição Federal, que diz que os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade, e o 230, que aborda o dever da família, da sociedade e do estado de amparar os idosos.
 
O magistrado citou ainda o Código Civil. O artigo 1.694 afirma que "podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação". A norma pontua também que o direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.
 
Segundo o relator, da análise dos documentos juntados, ficou comprovado que a autora do processo possui o diagnóstico de diabetes, hipertensão e artrose, necessitando de cuidador em tempo integral. E possui benefício previdenciário no valor de aproximadamente um salário-mínimo.
 
"Para a fixação do encargo, deve sempre ser observado o binômio necessidade-possibilidade", explica. Acompanharam o voto do relator os desembargadores João Ricardo dos Santos Costa e Luiz Felipe Brasil Santos.
 
Fonte: TJRS
 
https://jornaldaordem.com.br/noticia-ler/justica-determina-que-filhos-paguem-pensao-alimenticia-mae-idosa/50203

quarta-feira, 24 de abril de 2024

SERVIDORA PÚBLICA FEDERAL PODERÁ CUMPRIR HORÁRIO ESPECIAL PARA CUIDAR DE MÃE COM ALZHEIMER


Ao analisar o pedido liminar, a ministra relatora reconheceu os requisitos para a concessão do efeito suspensivo ao recurso, destacando a importância do amparo estatal à pessoa idosa e com deficiência. 
 
Enfatizou que o conceito de "dependente" transcende a mera dependência econômica, devendo abranger outras esferas de cuidado e proteção.
 
"Importante ressaltar, ainda, que a perita judicial foi taxativa ao afirmar que a genitora da Autora é portadora de síndrome demencial e neoplasia mamária e, ao ser questionada a respeito da necessidade de cuidados especiais e da importância da presença de familiares para o tratamento da paciente, asseverou a existência de dependência emocional da mãe em relação à filha, bem como que a presença da Autora contribui para a sensação de segurança da paciente", completou.
 
Rudi Meira Cassel, advogado da servidora e membro do escritório Cassel Ruzzarin Advogados, destacou a relevância da decisão, que vai ao encontro do amplo espectro de proteção legal destinado a idosos e pessoas com deficiência no Brasil. Segundo Cassel, a tentativa de limitar o dever de cuidado a aspectos financeiros contraria a legislação protetiva nacional.
 
Processo: TutAntAnt 228
 
https://www.migalhas.com.br/quentes/405988/stj-servidora-tera-horario-especial-para-cuidar-de-mae-com-alzheimer

domingo, 7 de abril de 2024

STJ VÊ INVASÃO ILEGAL E REJEITA DENÚNCIA POR PLANTIO DE MACONHA EM CASA


Por entender que houve invasão ilegal de domicílio, a 6ª turma do STJ, por unanimidade, restabeleceu a sentença de 1º grau que rejeitou a denúncia contra um homem acusado de cultivar 58 pés de maconha no quintal de casa. O colegiado considerou ilícitas as provas obtidas após a entrada dos policiais na residência - diligência que se baseou somente em informações provenientes de uma denúncia anônima.
 
Após receberem a denúncia anônima de que um homem estaria cultivando maconha no quintal, a polícia foi até o local. Chegando na residência, os policiais foram recebidos por uma mulher que, segundo eles, permitiu seu ingresso e os levou até o quintal, onde mostrou os pés de maconha que pertenceriam ao marido. Durante seu interrogatório, o homem disse que era usuário de maconha e estudava os efeitos medicinais da planta.
 
O juízo de 1º grau apontou que a denúncia anônima não era suficiente para justificar a busca domiciliar sem mandado judicial e, por isso, rejeitou a denúncia do Ministério Público, entendendo não haver justa causa para o exercício da ação penal (art. 395, inciso III, do CPP). Entretanto, o TJ/PA determinou o prosseguimento da ação, sob o argumento de que, como a companheira do acusado autorizou a entrada dos policiais na residência, a prova produzida seria lícita.
 
O relator do caso no STJ, desembargador convocado Jesuíno Rissato, comentou que o estado de flagrância se prolonga no tempo quando se trata de crime permanente, mas tal circunstância não é suficiente, por si só, para validar uma busca domiciliar desprovida de mandado judicial. Segundo ele, a entrada da polícia na residência precisa ser justificada por indícios mínimos e seguros de que, naquele momento, havia uma situação de flagrância no local.
 
O magistrado ponderou que, conforme a jurisprudência do STJ, as circunstâncias que antecedem a violação do domicílio devem evidenciar, de modo satisfatório e objetivo, as razões que justificam tal diligência, não podendo derivar de simples desconfiança policial, apoiada em mera "atitude suspeita".
 
"No caso, ausentes diligências ou investigações prévias, não estão presentes fundadas razões para a realização de busca domiciliar sem mandado judicial. O fato de terem sido encontrados objetos ilícitos a posteriori não convalida a entrada no imóvel de maneira irregular. Se não havia fundada suspeita de que no imóvel havia droga ou objetos ou papéis que constituíssem corpo de delito, não há como se admitir que a mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior à invasão de domicílio, justifique a medida."
 
Rissato também ressaltou que não consta dos autos nenhuma comprovação de que o ingresso na casa do acusado tenha sido autorizado por sua companheira, a qual, inclusive, negou tal informação. De acordo com o relator, a suposta permissão, dada no clima de estresse da situação, não pode ser considerada, a menos que tivesse sido por escrito, testemunhada ou documentada em vídeo.
 
"Constitui ônus do Estado provar o dito consentimento do acusado para a entrada dos policiais no domicílio", concluiu ao dar provimento ao recurso especial.
 
Processo: REsp 2.113.202
 
Informações: STJ.
 
https://www.migalhas.com.br/quentes/404905/invasao-ilegal-stj-rejeita-denuncia-por-plantio-de-maconha-em-casa
 

sexta-feira, 29 de março de 2024

STJ PERMITE INCLUIR SOBRENOME DE PADRINHO PARA FORMAR PRENOME COMPOSTO


A 3ª turma do STJ validou alteração em registro de nascimento para adicionar o sobrenome do padrinho do interessado, criando, assim, um nome composto. Segundo o colegiado, a lei permite mudanças no prenome sem a necessidade de explicar os motivos, possibilitando a formação de nomes compostos por essa via.
 
O homem recorreu ao STJ para modificar sua certidão de nascimento. Ele queria incluir o sobrenome de seu padrinho ao seu nome. Seus pedidos anteriores foram rejeitados tanto em 1ª instância quanto no TJ/DF, com a justificativa de que não se poderia acrescentar ao nome um sobrenome que indicasse parentesco por parte de terceiros.
 
Argumentando pela legalidade de sua solicitação, o homem destacou que sua ação não prejudicaria os sobrenomes familiares e foi feita no prazo de um ano após atingir a maioridade, conforme permitido pela legislação vigente à época.
 
Além disso, foram apresentadas várias certidões negativas e uma declaração do padrinho apoiando a inclusão de seu sobrenome no nome do afilhado, fortalecendo o caso para a mudança.
 
Sobrenome como nome
 
O ministro Marco Aurélio Bellizze, relator do caso, enfatizou a importância do nome como expressão da personalidade individual, protegida civilmente para assegurar a identificação única da pessoa. 
 
Anteriormente, afirmou o ministro, a legislação estipulava prazo para a alteração do nome após a maioridade, mas a lei 14.382/22 removeu essa restrição temporal, facilitando a mudança de prenome sem intervenção judicial.
 
Bellizze salientou que, mesmo antes da mudança legislativa, o pedido do homem estava conforme as normas da época, pois foi feito em um ano após sua maioridade. 
 
Assim, considerando a autonomia privada e sem riscos para a segurança jurídica ou a terceiros, o pedido de alteração foi aceito.
 
"Diante disso, observados esses pressupostos, dever-se-ia acolher o pedido de alteração do prenome, independentemente da motivação externada pelo requerente, que poderá, por exemplo, modificá-lo integralmente, acrescer nomes intermediários, adotar prenome duplo ou até mesmo incluir apelido público notório, como prevê o artigo 58 da LRP", afirmou o ministro.
 
Nome como sobrenome
 
Em dezembro de 2023, a mesma turma decidiu de forma diversa em uma situação que pedia o oposto: a inclusão de um prenome como sobrenome. Os ministros não autorizaram que um homem incluísse em seu prenome uma homenagem que sua mãe recebeu ao nascer.
 
A família não possuía o sobrenome "Ramos", mas a mãe do interessado recebeu o termo no seu pronome como homenagem por nascer no "Domingo de Ramos". O filho, então, ajuizou ação requerendo a inclusão da palavra, também, na composição de seu sobrenome.
 
Segundo a relatora, ministra Nancy Andrighi, que foi seguida pelos ministros Humberto Martins e Villas Boas Cueva, não é possível incluir como sobrenome prenome de ascendente, pois inexistente o elemento de identificação da entidade familiar e o propósito de perpetuação da linhagem familiar.
 
Com entendimento diverso, ministros Moura Ribeiro e Marco Bellizze afirmaram que seria possível a inclusão do nome, tendo em vista a flexibilização admitida pela lei 14.382/22. 
 
Processo: REsp 1.951.170
Informações: STJ.
 
https://www.migalhas.com.br/quentes/404210/stj-permite-incluir-sobrenome-de-padrinho-para-formar-prenome-composto

terça-feira, 26 de março de 2024

ENTRE O HEROÍSMO E A TRAGÉDIA: OS 100 ANOS DO PARTIDO COMUNISTA. POR VALERIO ARCARY


O Partido Comunista Brasileiro foi fundado em Março de 1922, numa reunião em Niterói. Valerio Arcary analisa como, apesar das crises e erros táticos, o partido conseguiu ter um peso social, político e cultural na sociedade brasileira muito maior que seus pares na Argentina e México - e por que seus quadros foram militantes da mais elevada estatura, cruciais nas lutas populares e democráticas do século XX.
 
É razoável duvidar que, em uma história política de cem anos, ainda haja algo significativo a ser desvendado, ou que nos provoque alguma surpresa. No entanto, mesmo para aqueles que já têm uma opinião formada sobre a trajetória do Partido Comunista, seja ela neutra, favorável ou crítica, a verdade é que a celebração do aniversário é um convite para considerar novas hipóteses.
 
Na longa marcha do partido, que foi fundado em 1922, há lugar para muito respeito, sincera admiração, polêmicas inevitáveis, e até um pouco de espanto, e outro tanto de assombro. Os interessados descubrirão que ainda há muito por revelar e, portanto, refletir sobre o que foi, e no que se transformaram as correntes herdeiras do Partido Comunista.
 
Estudar a história do comunismo no Brasil é tema imprescindível. Trata-se de um desafio intelectual dos mais complexos. Porque, embora tenha havido uma investigação séria, ainda permanece ainda pouco pesquisada, explorada, explicada. Mas é também um imperativo político, em especial, para a nova geração da esquerda brasileira que chegou à vida adulta depois de 2013, e se forjou na luta contra Bolsonaro.
 
Entre a glória e o infortúnio
 
Análises históricas buscam o sentido das proporções. Se isso não é fácil decifrar o que aconteceu entre a fundação em 1922 e a reorganização em 1942, oitenta anos atrás, ou entre 1942 e 1964, quando o Partido Comunista alcançou o auge de sua influência, é ainda mais difícil para as duas etapas seguintes, o período da ditadura até a ruptura de Luís Carlos Prestes, e a última etapa que coincide com o período mais longo da democracia-liberal no Brasil. Desemaranhar o que ocorreu é descobrir o por quê. Foi uma história que uniu heroísmo e tragédia. Os militantes comunistas uniram, como nenhum outro do seu tempo, glória e infortúnio.
 
As vicissitudes das táticas merecem ser explicadas pelos impasses da estratégia. Ao longo de cem anos, cinco gerações de quadros lutaram sob a bandeira da revolução brasileira e foram derrotados. Mas as derrotas não diminuem o tamanho, na dimensão humana, dos personagens principais, os “quadros” em nosso jargão que, apesar de suas fragilidades e erros, aparecem engrandecidos, em perspective histórica, pela sua abnegação militante. Eles foram mulheres e dos homens da mais elevada estatura moral e intelectual que participaram das lutas populares no Brasil do século XX. Eles viveram uma época extraordinária, e foram capazes de feitos extraordinários.
 
Alguns deles foram homens de ação, dirigentes de greves e de campanhas políticas nas ruas. Outros foram organizadores de partido dedicados à formação dos militantes e à construção interna. E houve ainda aqueles que assumiram tarefas intelectuais complexas. Muitos foram levados às prisões sob os diferentes regimes políticos que o país conheceu entre os anos vinte e os anos setenta. Dirigiram sindicatos, associações de bairros, organizações camponesas. Trabalharam, discretamente, na legalidade, e mergulharam na clandestinidade quando se viram obrigados. Resistiram às desmoralizações que vieram com as prisões, cisões e exílios. Fizeram história. Mas, foram, politicamente, derrotados.
 
O partido, as crises e suas ramificações
 
Permanecem vivas as controvérsias de critérios para a apreciação histórica dos partidos políticos. Partidos podem ser julgados pelo programa que apresentam para a transformação da sociedade. Ou podem ser explicados pela história de suas linhas políticas, e de suas lutas políticas, sobretudo, as internas; pelo confronto entre suas posições quando estão na oposição, e quando se aproximaram do poder; ou até pelos valores e ideias que inspiram sua identidade; pela composição social de seus membros – militantes ou simpatizantes – ou dos seus eleitores, ou da sua direção; pelo regime interno do seu funcionamento; pelas formas de seu financiamento; ou pelas suas relações internacionais. Todos estes critérios são válidos e significativos, e a construção de uma síntese exige uma apreciação da sua dinâmica de evolução. Só não se pode é julgar um partido por aquilo que ele pensa sobre si próprio.
 
Para aqueles que usam o marxismo como método de análise das relações sociais e políticas, todos estes elementos são significativos, mas uma caracterização de classe é, finalmente, inescapável. O Partido Comunista foi, durante sessenta anos, entre 1922 e 1982, o principal partido da esquerda brasileira: o mais influente na classe operária, o mais ramificado em escala nacional, o mais forte na intelectualidade e o maior na institucionalidade. 
 
Mas, como tudo que existe, os partidos se transformam, e a narrativa dessas mudanças é o cerne da investigação histórica. Quando a história se resigna a procurar um fio de permanência nas organizações político-sociais ela renuncia ao seu maior desafio. Não é razoável que, qualquer uma das organizações que celebram o partido que nasceu em 1922, reivindique, exclusivamente, para si a continuidade direta da reunião de Niterói. Além do PCdB e PCB, que mantém uma identidade clara, há comunistas no PSOL e, também, em todas as organizações que se reconhecem como herdeiras da revolução de Outubro.
 
Acontece que as mudanças não são possíveis sem crises. O PCB conheceu em sua longa história cinco crises devastadoras. Foram períodos dramáticos. O elemento comum a essas cinco grandes crises foi que o PCB quase desapareceu nas quatro primeiras, para ressurgir em imprevistas reorganizações e, finalmente, sucumbir, irremediavelmente, na última. Recuperou-se das primeiras quatro grandes crises da sua história, mas o fez deixando de ser o que era, porque se transformou de tal forma que reapareceu quase irreconhecível.
 
A primeira e menos estudada foi a crise da fase da sua stalinização no final dos anos vinte e início dos anos trinta, um processo que consumiu várias rupturas, as principais delas dirigidas por Mário Pedrosa e Hermínio Sacchetta que deram origem à Quarta Internacional no Brasil. A segunda foi a provocada pela derrota da insurgência militar de 1935 quando parecia ter sido eliminado pela repressão implacável, e saiu da mais estrita clandestinidade para se transformar, quase da noite para o dia, em um dos maiores partidos comunistas da América do Sul.
 
A terceira foi a crise aberta após o golpe de 1964 e a consolidação da ditadura militar, quando o duplo impacto da derrota diante da contrarrevolução no Brasil e da vitória da Revolução Cubana, provocou uma explosão do Comitê Central que tinha resistido à cisão alinhada, após alguns anos com a corrente internacional pró-chinesa/albanesa que originou o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), sob a liderança de João Amazonas, Pedro Pomar e Arruda Câmara.
 
A quarta foi a incrível ruptura com Luís Carlos Prestes, a principal liderança histórica, durante meio século. A última foi a crise final, aquela que se abriu após 1989/1991, quando da derrubada do regime burocrático na ex-URSS, quando a restauração capitalista conduzida por uma fração dirigente do próprio Partido Comunista, chefiada pro Gorbatechev, precipitou a desagregação internacional dos partidos até então associados a Moscou.
 
Ziguezagues e fragmentações
 
A desqualificação do papel histórico que as organizações sindicais e políticas dos trabalhadores e das massas populares tiveram na história do país é um capítulo da batalha ideológica dos nossos tempos. Ao escrever sobre as lutas do passado, os historiadores estão, conscientemente ou não, envolvidos nos combates do presente. O peso social, político, ideológico e até cultural que o Partido Comunista teve na sociedade brasileira foi, proporcionalmente, muito maior que o peso dos Partidos Comunistas na Argentina e no México, os outros dois países chaves da América Latina.
 
Mas há um paradoxo na historiografia disponível sobre a história do Partido Comunista. Tanto aquela simpatizante do PCB, quanto a que lhe foi adversa, coincidiram em identificá-lo como um partido marxista-revolucionário, o que é insensato. Nos anos trinta, o Partido Comunista de Luís Carlos Prestes já não era o mesmo partido de Astrogildo Pereira dos anos vinte. A pesquisa rigorosa nos apresenta a história errática da evolução das orientações políticas do PCB, que oscilou da formação da Aliança Nacional Libertadora (ANL), como Frente Nacional Democrática para a insurreição militar de 1935, da tática da União Nacional antifascista contra o governo Vargas para o queremismo de apoio a Getúlio em 1945. O PCB oscilou de uma posição sectária diante de Vargas depois da eleição de 1950 para um papel auxiliar da corrente nacional-desenvolvimentista durante o governo Juscelino e Jango. O PCB foi incapaz de compreender que, a partir das greves de trabalhadores de 1978/79 e o surgimento do PT, era possível derrotar a ditadura nas mobilizações de massas nas ruas, insistindo no seguidismo da liderança burguesa liberal do MDB que culminou com a eleição de Tancredo no Colégio Eleitoral da ditadura em 1985. 
 
Somente contextualizando as flutuações da linha do PCB nos marcos das suas relações com Moscou, do blanquismo tardio do terceiro período ao seguidismo diante de Getúlio, da impotência diante da preparação do golpe contrarrevolucionário de 1964 ao sectarismo diante da formação do PT, da capitulação diante de Tancredo e apoio ao governo Sarney à dissolução de sua maioria em um partido de aluguel que se transformou em satélite do PSDB, o maior partido burguês liberal das ultimas décadas.
 
Os estonteantes ziguezagues da política do PCB ainda exigem uma explicação histórica. A principal razão para essa ausência repousou na dificuldade de compreensão do que foi o stalinismo. O stalinismo emergiu nos anos vinte como um fenômeno histórico novo, e tudo o que é, historicamente, original é, para os seus contemporâneos, mais difícil de explicar. A distância de cem anos nos oferece uma vantagem de perspectiva que pode, também, nos enganar.
 
A principal singularidade do stalinismo é que ele não foi uma doutrina, nem muito menos uma política. O stalinismo mudou tantas vezes de política, e abraçou orientações tão diversas e realizou giros tão espetaculares, que os esforços de encontrar coerência interna na evolução das idéias que saíam de Moscou para conduzir a III Internacional e, depois do fim da segunda guerra mundial, a corrente internacional sob sua influência, frustraram a maioria dos seus estudiosos, fossem eles simpáticos ou avessos aos destinos do regime no poder na União Soviética.
 
Programaticamente, o stalinismo foi a ideologia nacionalista de um Estado controlado por um aparelho burocrático gigantesco, os pelo menos 5 milhões de funcionários que compunham a denominada nomenklatura, ou seja, o contrário do internacionalismo. Quando a liderança de Stálin à frente da URSS girou da defesa da orientação da Frente Populares contra o fascismo para o Pacto Molotov/Ribbentrop – ao mesmo tempo em que, entre 1936 e 1939, os Processos de Moscou liquidavam fisicamente o que ainda existia de bolcheviques dentro do Partido – os partidos comunistas no Ocidente foram colocados diante do desafio de justificar o inexplicável. Quando Gorbatchev iniciou a restauração capitalista com a Perestroika, de novo, o inimaginável aconteceu, e foi com a mesma paixão que muitos o defenderam.
 
Mas é possível sentir orgulho da história dos comunistas brasileiros, e abraçar a paixão que os levou a sacrifícios gigantes e, ao mesmo tempo, aprender com seus erros. 
 
Sobre os autores
VALERIO ARCARY
é historiador, militante do PSOL (Resistência) e autor do livro "O Martelo da História. Ensaios sobre urgência da revolução contemporânea"(Sundermann, 2016).
 
https://jacobin.com.br/2022/03/entre-o-heroismo-e-a-tragedia-os-100-anos-do-partido-comunista/

sábado, 23 de março de 2024

A IA PODE MUDAR NOSSA ESPÉCIE. POR ASHER DUPUY-SPENCER E DAVID CALNITSKY


TRADUÇÃO
SOFIA SCHURIG

Algumas tecnologias aumentam a produtividade, mas outras remodelam não só a nossa sociedade, mas também a nossa fisiologia. Seja qual for o poder de transformação da Inteligência Artificial (IA), a estratégia socialista deve ser a mesma: aumentar o poder do trabalho.
 
Desde os primórdios da humanidade, o surgimento repentino de novas tecnologias teve consequências sociais profundas – mas nem sempre óbvias imediatamente. À medida que a forma como vivemos muda, nós também mudamos. Às vezes, de maneira profunda.
 
Por exemplo, os cérebros dos Homo sapiens em todo o mundo são agora menores do que eram há 300 mil anos. Uma das várias explicações concorrentes para esse fenômeno é a teoria de que o surgimento da linguagem e a disseminação do conhecimento na sociedade reduziram a complexidade dos problemas que os indivíduos precisavam resolver.
 
Em essência, as primeiras tecnologias humanas – cultura e linguagem – reduziram maciçamente a carga cognitiva sobre os indivíduos. Em vez disso, ela foi externalizada – em histórias, tradições, religiões e artesanatos. Agora, temos cérebros menores do que nossos ancestrais mais antigos, mas sabemos muito mais do que eles poderiam ter sonhado em saber.
 
Considere outro exemplo: o uso de bastões pontiagudos, especialmente projéteis, nas primeiras sociedades humanas. Esse simples avanço tecnológico ajudou nossos ancestrais a caçar grandes ungulados como mamutes, mas também pode ter desempenhado um papel crucial na promoção de uma sociedade mais igualitária, diminuindo o poder dos machos fisicamente dominantes. Para o famoso primatologista Christopher Boehm, essa redistribuição súbita do potencial de violência explica o declínio nos tipos de agressão reativa que vemos entre os outros grandes macacos. Bastões pontiagudos reorganizaram o poder entre os humanos – a tecnologia promoveu uma cultura evoluída de igualitarismo político que distingue fortemente os hominídeos do chimpanzé ultraviolento, nosso primo mais próximo.
 
Então, cerca de doze mil anos atrás, novas tecnologias começaram a desafiar esse igualitarismo “do bastão pontiagudo”. Os humanos aproveitaram o poder da evolução e começaram a criar seletivamente plantas e animais, tornando possível um excedente durável e quantificável. A chamada Revolução Neolítica não era apenas sobre comida; trouxe novas ferramentas, relacionamentos e estruturas sociais. O excedente gerado pela agricultura abriu caminho para o estabelecimento de estados agrários. Foi quando as sociedades humanas testemunharam pela primeira vez o surgimento de hierarquias estruturadas e das burocracias nascentes do Estado, com suas armadilhas de poder e subjugação. As armas que antes possibilitavam nossa natureza igualitária agora eram as ferramentas de poder, exploração e dominação.
 
Os primeiros horticultores experimentais não estavam tentando construir hierarquia a partir de sementes de gramíneas selvagens. Foi uma consequência não intencional de uma inovação muito útil. A acumulação de riqueza e poder, e as instituições estatais que surgiram para defendê-las, também trouxeram a civilização e a linguagem escrita. À medida que a agricultura surgiu, vimos um declínio na saúde e na expectativa de vida; mas eventualmente ela facilitou vidas mais longas, ricas e saudáveis, e uma população humana muito maior.
 
A emergência do capitalismo, no entanto, marcou uma mudança no ritmo e no padrão da mudança tecnológica. Como qualquer aluno de Karl Marx saberá, o capitalismo é caracterizado por revoluções consistentes e às vezes radicais nas formas como os seres humanos produzem o que precisam. Em modos pré-capitalistas de organização social, o crescimento era lento e caracterizado por colapsos demográficos periódicos. No capitalismo, a produção por trabalhador aumentou constantemente e todos os limites malthusianos foram superados.
 
“De tempos em tempos, uma ruptura tecnológica transforma fundamentalmente os termos nos quais operamos – não apenas como sociedade, mas como espécie.“
 
Nos últimos cem anos, apesar de enormes avanços tecnológicos, certos recursos principais do capitalismo permaneceram estáveis: o poder do estado, a dependência de mercados, a apropriação privada do excedente social, e assim por diante. Mas se olharmos para o passado como nosso guia, com cada novo avanço tecnológico, há o potencial para consequências definidoras de época. A história da humanidade é um testemunho do poder transformador da tecnologia. Avanços passados ampliaram as capacidades produtivas humanas, mas alguns também resultaram na reestruturação da vida social e na redistribuição do poder.
 
Desde pelo menos os ludistas, e consistentemente desde a década de 1960, as pessoas à esquerda – e em todo o espectro político, para ser franco – têm se preocupado principalmente com as implicações no mercado de trabalho desses avanços tecnológicos implacáveis. Isso é apenas sensato. Novas técnicas de produção frequentemente eliminaram empregos para reduzir custos. Felizmente, o crescimento total da produção compensou na maioria dos casos, permitindo a criação de novos produtos e mercados.
 
No entanto, a inovação na era digital, até agora, falhou em gerar os enormes aumentos na produtividade total que eram esperados. Computadores, robótica, algoritmos, comunicações via internet e agora inteligência artificial (IA) baseada em grandes modelos de linguagem foram integrados ao processo de produção. No entanto, o crescimento da produtividade per capita ainda é significativamente menor do que durante o período pós-guerra – particularmente nos países já na vanguarda da tecnologia.
 
Desde a chegada do ChatGPT, as pessoas estão novamente começando a se preocupar. Lutando para entender as implicações dos recentes avanços em IA, especialistas e políticos redescobriram acidentalmente a natureza de duas faces das convulsões tecnológicas. Enquanto alguns preveem um futuro distópico onde o desemprego prevalece e os benefícios acumulam apenas para os proprietários de capital, outros vislumbram um mundo utópico livre de trabalho árduo. Como em rodadas anteriores de avanço tecnológico, as pessoas estão começando a se perguntar quais empregos serão automatizados e em que medida.
 
Ninguém pode ter certeza do que o futuro reserva quando se trata de tais avanços tecnológicos. No entanto, temos centenas de anos de história capitalista, o que nos permite extrair algumas lições gerais. A automação do emprego geralmente resultou no absorção de mão-de-obra em outras indústrias. Essas mudanças na força de trabalho estão associadas a mudanças significativas na distribuição de poder e renda entre as economias.
 
A maioria das grandes inovações do último século resultou no aumento da prerrogativa gerencial e foram destinadas a isso. A mudança técnica raramente é neutra em relação aos efeitos que tem na experiência subjetiva do trabalho. O poder das instituições da classe trabalhadora, sindicatos e partidos, pode impactar os efeitos de renda e emprego da automação, mas raramente moldou a trajetória da mudança tecnológica em si.
 
De tempos em tempos, no entanto, uma ruptura tecnológica consegue, de fato, transformar fundamentalmente os termos nos quais operamos – não apenas como classe ou sociedade, mas como espécie. Assim como o surgimento da linguagem ou da agricultura, o surgimento da IA pode muito bem ser uma dessas mudanças definidoras de época. Mas não é óbvio que o efeito no emprego será o mecanismo pelo qual experimentaremos essa convulsão.
 
Enquanto escrevemos, a guerra aprimorada por IA assola Gaza e o leste europeu. Novos e aterrorizantes modos de vigilância estão sendo implantados em todo o planeta. E está se tornando cada vez mais difícil discernir imagens e sons digitalmente aumentados ou produzidos daqueles capturados da vida real. Essas aplicações não mercadológicas são politicamente significativas e, francamente, mais assustadoras do que quaisquer mudanças no emprego.
 
A ciência e a tecnologia estão prestes a avançar de maneiras novas e podem progredir em direções muito difíceis para muitos – ou até todos – entenderem. Com isso vem tanto risco quanto possibilidade. Por exemplo, a promessa de um mundo mais saudável e rico é muito real, mas também é o aterrorizante acúmulo de aplicações militares de IA destrutivas.
 
Assim como foi desde o início do movimento trabalhista, os socialistas devem se envolver na política em um cenário tecnológico mutante. Lutar contra a automação, como tal, pode ser uma batalha perdida – mas defender a autonomia e o poder dos trabalhadores não precisa ser. Demandas pela distribuição dos ganhos de eficiência são o mínimo necessário. Mas, com relação aos enormes desconhecidos da tecnologia de IA, não há um caminho óbvio.
 
O que sabemos é que os trabalhadores e as pessoas comuns devem ter poder de decisão em sua implementação. Em um artigo famoso, Claus Offe e Helmut Wiesenthal escreveram sobre como os problemas de ação coletiva diferem para as elites e os trabalhadores comuns. Os interesses das elites são transparentes – todas as necessidades estão a jusante do lucro – e isso pode ser alcançado por meio de tecnocratas e advogados que fazem o que querem. Os interesses da classe trabalhadora, no entanto, nunca são transparentes; eles sempre envolvem diálogo e devem ser descobertos.
 
Algumas pessoas simplesmente precisam de mais renda; outros podem ser mais velhos e focados na segurança no local de trabalho; alguns têm necessidades relacionadas à saúde ou filhos que precisam de seguro; outros ainda preferem barganhar por mais tempo livre. O diálogo sempre foi necessário não apenas para alcançar, mas também para compreender os objetivos das pessoas comuns.
 
O futuro da IA não é diferente e exigirá um diálogo contínuo para descobrir quais são nossos interesses. Esse processo será uma condição necessária, se não suficiente, para a governança humana das novas tecnologias. Um futuro decente exigirá que a grande maioria das pessoas tenha voz quando se trata de pesquisa, desenvolvimento e implementação de tecnologia. Isso só é possível com sindicatos mais fortes e partidos socialistas disputando o poder. Há muita incerteza em torno do ritmo e do conteúdo dos próximos anos de mudança técnica. Devemos garantir deixar nossa marca da melhor forma possível.
 
O que é bom para poucos raramente é totalmente bom para muitos, certamente não a curto prazo. A longo prazo, esperamos que, ao contrário da chegada da linguagem e da cultura humana, nossos cérebros não encolham no processo.
 
Sobre os autores
ASHER DUPUY-SPENCER
é editor da Verso Books.
 
DAVID CALNITSKY
é professor assistente no departamento de sociologia da Universidade de Western Ontario.
 
https://jacobin.com.br/2024/03/a-ia-pode-mudar-nossa-especie/
 

terça-feira, 19 de março de 2024

EM MEMÓRIA DA COMUNA. POR VLADIMIR LÊNIN


TRADUÇÃO
PEDRO CASTRO

Há 150 anos, o estrondo dos canhões nas barricadas da Comuna de Paris despertaram a classe operária mundial para a luta contra a exploração. Publicado originalmente na Rabochaya Gazeta, em 1911, o revolucionário Vladimir Lênin resgata a imortalidade de uma das primeiras tentativas de um levante da classe trabalhadora para criar o socialismo.
 
Já se passaram quarenta anos desde a proclamação da Comuna de Paris. Seguindo a tradição, o proletariado francês honrou a data com comícios e manifestações em memória dos homens da revolução de 18 de março de 1871. No final de maio voltarão a levar coroas de flores às tumbas dos communards fuzilados durante a terrível “semana de maio” e a jurar, diante delas, que lutarão sem descanso até o triunfo completo de suas ideias, até dar por cumprida a obra por eles legada.
 
Por que o proletariado – não apenas o francês como o de todo o mundo – honra os combatentes da Comuna e seus precursores? Qual é a herança da Comuna?
 
A Comuna de Paris surgiu de forma espontânea; ninguém a preparou de modo consciente ou sistemático. A terrível guerra contra a Alemanha, os sofrimentos das privações impostas pelo cerco militar, o desemprego operário e a ruína da pequena burguesia; a indignação das massas contra as classes superiores e contra as autoridades, que haviam demonstrado uma incapacidade absoluta; a surda efervescência no seio da classe operária, descontente de sua situação e ansiosa por um novo regime social; a composição reacionária da Assembleia Nacional, que fazia temer os destinos da República, foram as causas que concorreram com outras muitas para impulsionar a população parisiense para a revolução do 18 de março, que colocou de improviso o poder nas mãos da Guarda Nacional, em mãos da classe operária e da pequena burguesia, que havia se unido a ela.
 
Foi um acontecimento histórico sem precedentes. Até então, o poder estava, em geral, nas mãos dos grandes proprietários de terra e dos capitalistas, quer dizer, de seus mandatários, que constituíam o chamado governo. Depois da revolução de 18 de março, quando o governo do senhor Adolphe Thiers fugiu de Paris com suas tropas, sua polícia e seus funcionários, o povo tomou o controle da situação, e o poder passou para as mãos do proletariado. Porém, na sociedade moderna, o proletariado, avassalado no campo econômico pelo Capital, não pode dominar na política se não romper as correntes que o amarram ao Capital. Daí que o movimento da Comuna deveria adquirir inevitavelmente um matiz socialista, isto é, deveria tender ao aniquilamento do domínio da burguesia, da dominação do capital e à destruição das próprias bases do regime social contemporâneo.
 
A princípio, tratou-se de um movimento heterogêneo e confuso. A ele somaram-se também os patriotas e nacionalistas, na esperança de que a Comuna reiniciaria a guerra contra os alemães e levasse a um desenlace venturoso. Apoiaram-no também os pequenos lojistas, em perigo de arruinamento se não se adiasse o pagamento dos títulos vencidos e dos aluguéis – adiamento este que lhes era negado pelo governo, mas que a Comuna lhes concedeu. Por último, no começo também simpatizaram em certa medida com os movimentos republicanos burgueses, temerosos de que a reacionária Assembleia Nacional (os ruralistas, os violentos latifundiários) restabelecessem a monarquia. Porém, o papel fundamental nesse movimento foi desempenhado, naturalmente, pelos operários (sobretudo os artesãos parisienses), entre os quais se havia espalhado, nos últimos anos do Segundo Império da França, uma intensa propaganda socialista –muitos deles, inclusive, eram filiados à Internacional comunista.
 
Somente os operários revelaram-se fiéis à Comuna até o seu fim. Os republicanos burgueses e a pequena burguesia não tardaram em apartar-se dela: uns assustaram-se com o caráter revolucionário socialista do movimento, com seu caráter proletário; outros se afastaram quando viram que a Comuna estava inevitavelmente condenada à derrota. Apenas os proletários franceses apoiaram seu governo sem temor nem vacilo; só eles lutaram e morreram por ele, quer dizer, pela emancipação da classe operária, por um futuro melhor para os trabalhadores.
 
Abandonada por seus aliados de outrora e sem poder contar com nenhum apoio, a Comuna precisava ser derrotada. Toda a burguesia francesa, todos os latifundiários, especuladores da bolsa e fabricantes, todos os grandes e pequenos ladrões, todos os exploradores uniram-se contra ela. Com a ajuda de Bismarck (que pôs em liberdade 100 mil soldados franceses, prisioneiros dos alemães, para esmagar a Paris revolucionária), essa coalizão burguesa logrou confrontar com o proletariado parisiense os camponeses atrasados e a pequena burguesia de províncias e cercar metade de Paris com um anel de ferro – a outra metade havia sido cercada pelo exército alemão. Em algumas cidades importantes da França (Marselha, Lyon, Saint-Etienne, Dijon e outras) os operários também tentaram tomar o poder, proclamar a Comuna e acudir Paris. Tais intentos, porém, logo fracassaram, e Paris, que havia sido o primeiro local a desfraldar a bandeira da insurreição proletária, ficou abandonada à sua própria sorte, condenada a uma morte certa.
 
Para que uma revolução social triunfe, são necessárias pelo menos duas condições: um alto desenvolvimento das forças produtivas e um proletariado preparado para tal. Contudo, em 1871, nenhuma dessas condições estava dada. O capitalismo francês encontrava-se ainda pouco desenvolvido; a França era, então, fundamentalmente um país de pequena burguesia (artesãos, camponeses, lojistas etc.). Da mesma forma, não existia um partido operário; a classe operária não tinha preparação nem havia passado por um grande treinamento e, em sua massa, sequer tinha uma noção totalmente clara de quais eram seus objetivos nem como se poderia alcançá-los. Não havia uma organização política séria do proletariado nem sindicatos e cooperativas fortes…
 
Mas o que faltou à Comuna foi, principalmente, tempo, isto é, possibilidade para perceber a situação das coisas e empreender a realização de seu programa. Não teve tempo para iniciar essa tarefa quando o governo, entrincheirado em Versalhes e apoiado por toda a burguesia, iniciou as operações militares contra Paris. A Comuna teve de pensar, antes de tudo, em sua própria defesa. E até seu fim, que ocorreu na semana de 21 a 28 de maio, não houve tempo para pensar com seriedade em outra coisa.
 
Por certo, mesmo com essas condições tão desfavoráveis e à brevidade de sua existência, a Comuna teve tempo de aplicar algumas medidas que caracterizam bastante seus verdadeiros sentido e objetivo. Substituiu o exército permanente, instrumento cego em mãos das classes dominantes, pelo armamento de todo o povo; proclamou a separação da Igreja do Estado; suprimiu a subvenção ao culto (o soldo que o Estado pagava aos padres) e deu um caráter estritamente laico à instrução pública, com o que desferiu um rude golpe aos soldados de batina.
 
Pouco foi o que se pôde fazer no terreno puramente social. Esse pouco, porém, mostra com suficiente clareza seu caráter de governo popular, de governo operário: o trabalho noturno fpo abolido nas padarias, o sistema das multas foi extinto – essa exploração consagrada pela lei, com que se vitimavam os operários – e, finalmente, foi promulgado o famoso decreto de entrega de todas as fábricas e oficinas abandonadas ou paralisadas por seus donos às cooperativas operárias, com o objetivo de retomar a produção. E, para sublinhar, seu caráter de governo autenticamente democrático, proletário, a Comuna dispôs que a remuneração de todos os funcionários administrativos e do governo não fosse superior ao salário normal de um operário, nem passasse em nenhum caso dos 6 mil francos anuais (menos de 200 rublos ao mês).
 
Todas essas medidas mostravam eloquentemente que a Comuna constituía uma ameaça de morte ao Velho Mundo, baseado no avassalamento e na exploração. Essa era a razão pela qual a sociedade burguesa não podia dormir tranquilamente enquanto o ajuntamento de Paris ostentasse a bandeira vermelha do proletariado. E, quando a força organizada do governo pôde, afinal, dominar a força mal organizada da revolução, os generais bonapartistas, esses mesmos generais derrotados pelos alemães mas com atitudes garbosas frente a seus compatriotas vencidos, esses Rennenkampf e Méller-Zakomelski franceses fizeram uma matança como nunca vista em Paris. Cerca de 30 mil parisienses foram mortos pela soldadesca enfurecida; uns 45 mil foram detidos, executados logo muitos e desterrados ou enviados a trabalhos forçados milhares deles. No total, Paris perdeu 100 mil filhos, entre os quais se encontravam os melhores operários de todos os ofícios.
 
A burguesia estava satisfeita. “Agora o socialismo acabou, por um longo tempo!”, dizia seu sanguinário chefe, o diminuto Adolphe Thiers, quando ele e seus generais afogaram em sangue a sublevação do proletariado de Paris. Mas de nada serviram os grunhidos desses corvos burgueses. Não passariam ainda seis anos da derrocada da Comuna, enquanto se achavam muitos de seus lutadores em presídio ou no exílio, quando na França iniciou-se um novo movimento operário. A nova geração socialista, enriquecida com a experiência de seus predecessores e em absoluto desencorajada pela derrota que sofreram, recolheu a bandeira caída das mãos dos combatentes da Comuna e levou-a adiante com firmeza e valentia aos gritos de “Viva a revolução social! Viva a Comuna!”. E três ou quatro anos mais tarde um novo partido operário e a agitação que levantará no país obrigaram as classes dominantes a pôr em liberdade os communards que o governo ainda mantinha presos.
 
Honram a memória dos combatentes da Comuna não só os operários franceses, senão também o proletariado de todo o mundo, pois ela não lutou apenas por um objetivo local ou nacional estreito, mas pela emancipação de toda a humanidade trabalhadora, de todos os humilhados e ofendidos. Como combatente de vanguarda da revolução social, a Comuna ganhou a empatia onde quer que o proletariado sofra e lute. A epopeia de sua vida e de sua morte, o exemplo de um governo operário que conquistou e reteve em suas mãos durante mais de dois meses a capital do mundo e o espetáculo da heróica luta do proletariado e seus padecimentos depois da derrota têm levantado até hoje a moral de milhões de operários, têm alentado suas esperanças e têm conquistado sua simpatia para o socialismo. O troar dos canhões de Paris despertou de seu sono profundo às camadas mais atrasadas do proletariado e deu um impulso à propaganda socialista revolucionária em todas as partes. Por isso não morreu a causa da Comuna, por isso segue vivendo até hoje em cada um de nós.
 
A causa da Comuna é a causa da revolução social, é a causa da completa emancipação política e econômica dos trabalhadores, é a causa do proletariado mundial. E, nesse sentido, é imortal.
 
Sobre os autores
VLADIMIR LÊNIN
foi um dos principais revolucionários comunistas do século XX e teórico político russo que serviu como chefe de governo da Rússia Soviética de 1917 a 1924 e da União Soviética de 1922 até sua morte.
 
https://jacobin.com.br/2021/03/em-memoria-da-comuna/

sábado, 9 de março de 2024

O QUE É PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO? ANTECIPAR HERANÇAS? ENTENDA POR QUE FAMÍLIAS ESTÃO INDO AOS CARTÓRIOS. Flavia Thais de Genaro Machado de Campos


Diante da proposta de reforma tributária, famílias buscam alternativas para o planejamento sucessório. Em meio à pandemia, discutir instrumentos jurídicos torna-se crucial para assegurar a perpetuação do patrimônio.
 
Com a proposta de reforma tributária do governo, muitas famílias estão buscando alternativas para evitar custos, conflitos e burocracias no futuro.
 
Descubra as vantagens e opções de planejamento sucessório neste cenário de mudanças fiscais. Se há algo inescapável na vida é a sua finitude. O Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil - Sincep encomendou uma pesquisa inédita em 2018 sobre a percepção dos brasileiros acerca da morte1.
 
Entre os principais resultados, destaca-se que 74% das pessoas afirmam não falar sobre a morte no cotidiano e que os brasileiros, em sua grande maioria, associam o assunto a sentimentos como tristeza (63%), dor (55%), saudade (55%), sofrimento (51%) e medo (44%). No entanto, o cenário de incertezas pelo qual a sociedade está passando em virtude da pandemia causada pelo novo coronavírus amplificou a importância da discussão sobre o futuro, trazendo de volta a reflexão sobre os instrumentos jurídicos capazes de assegurar o planejamento sucessório e a perpetuação do patrimônio.
 
Segundo informações extraídas do Family Business Institute em seu sítio eletrônico2, aproximadamente 70% das empresas familiares se extinguem quando sua administração passa da primeira para a segunda geração. Este percentual aumenta para 88% quando as empresas passam da segunda para a terceira geração, demonstrando a importância de discutir e planejar a sucessão de uma maneira ordenada.
 
É importante observar que o planejamento sucessório não é destinado apenas a famílias empresárias, mas também a todos aqueles que queiram planejar e organizar a sua sucessão.
 
Mas, afinal, o que é o planejamento sucessório? O planejamento sucessório pode ser compreendido como um conjunto de medidas empreendidas para organizar a sucessão hereditária de bens e direitos previamente ao falecimento do titular dos bens3.
 
Ou seja, podem ser adotados um ou vários instrumentos jurídicos que permitam a utilização de estratégias voltadas para a transferência eficaz e eficiente do patrimônio. É considerado um instrumento preventivo, que poderá abarcar não somente questões patrimoniais, mas também questões existenciais relevantes ao titular do planejamento, como, por exemplo, a destinação do corpo após o falecimento ou a destinação do acervo sucessório digital.
 
Qual é a finalidade do planejamento sucessório?
 
Grosso modo, o planejamento sucessório terá por finalidade otimizar o processo de transmissão dos bens, segundo a realidade circundante de quem planeja e dos seus herdeiros, de modo a evitar custos econômicos e emocionais, além da demora que um inventário pode trazer.
 
É considerado um instrumento preventivo que vem ganhando cada vez mais destaque e importância atualmente, justamente porque se insere em um contexto muito mais amplo, visando atender a uma nova realidade social em que o instituto do Direito das Sucessões, isoladamente, não alcança plenamente as aspirações sociais, já que está em descompasso com a sociedade contemporânea.
 
Como é feito o planejamento sucessório?
 
Qualquer decisão a respeito do planejamento sucessório deve ser tomada de maneira livre e consciente, longe das amarras e pressões familiares e com a orientação de um corpo jurídico que atue nesta área.
 
Ao contrário do que muitos pensam, definir os critérios para o planejamento, com clareza das opções e adequação às peculiaridades do caso concreto e, principalmente, aos interesses do titular dos bens e daqueles que os receberão, pode se consubstanciar em uma experiência libertadora - e, em muitos casos, longe de ser uma decisão irrevogável ou definitiva, pode ser modificada no decorrer da vida e das mudanças familiares4.
 
Antes de mais nada, é preciso entender as reais necessidades e desejos do titular do patrimônio. Após esta etapa, faz-se uma auditoria de todo o acervo de bens (sejam eles móveis, imóveis, tangíveis, intangíveis, físicos ou digitais, no Brasil e no exterior). Regularizados e estabelecidos os valores, identificam-se os direitos de eventual cônjuge ou companheiro, mapeiam-se os herdeiros e os demais sucessores e, eventualmente, terceiros a serem contemplados. Todas estas etapas são de suma importância para que se realize um planejamento sucessório bem-sucedido, minimizando riscos e impactos negativos futuros.
 
Interesses e objetivos do titular dos bens nem sempre estarão em sintonia com as aspirações e expectativas dos herdeiros ou cônjuge/companheiro, criando-se áreas de atrito que podem, por vezes, comprometer o andamento do planejamento. Diante deste impasse, a transparência, a confiança e a comunicação entre todos os membros da família e o corpo jurídico são imprescindíveis para que se possa estruturar uma sucessão que atenda às finalidades e objetivos do titular do patrimônio e dos seus sucessores.
 
Quais são os instrumentos que podem ser utilizados para um planejamento sucessório?
 
Embora não haja na legislação um capítulo específico que trate do planejamento sucessório, existem vários instrumentos comuns do direito civil e empresarial que podem ser empregados para realizar a vontade do titular do patrimônio de planejar a transição dos bens - o qual pode, inclusive, fazer a transferência ainda em vida.
 
Pode-se dividir os instrumentos em cinco grandes grupos - que serão analisados mais a fundo em um novo artigo:
 
Instrumentos de natureza contratual: contrato de compra e venda entre ascendente e descendente, contrato de doação, contrato de mandato, contrato de comodato, seguro de vida, pacto antenupcial e alteração do regime de bens;
Instrumentos de natureza real: usufruto, direito real de uso e direito real de habitação;
 
Instrumentos de natureza societária: constituição de sociedade holding, acordo de sócios, acordo de quotistas, governança corporativa, conselho e administração, conselho de família, transformação, incorporação, cisão e fusão;
 
Instrumento de natureza financeira: constituição de previdência privada, fundos de investimentos e seguro de vida;
Instrumentos de natureza sucessória: testamento, codicilo, legados, testamento vital, cessão de direitos hereditários e deserdação.
 
Como se percebe, há uma infinidade de instrumentos que podem ser utilizados quando da realização de um planejamento sucessório. É necessário analisar detalhadamente o caso concreto e a composição familiar para que se construa um planejamento sólido com instrumentos capazes de abarcar os anseios de todo o grupo familiar.
 
 Flavia Thais de Genaro Machado de Campos
Bacharel em direito, advogada com OAB/SP 204.044 especialista em Direito Tributário, Direito do Consumidor, Gestão em Recurso Humanos, Gestão Trabalhista e Previdenciária. Advogada e proprietária.
 
https://www.migalhas.com.br/depeso/401807/o-que-e-planejamento-sucessorio-antecipar-herancas